14 dezembro 2009

amor aos bocados, de forma inteira

Dose da fatia de um doce

dá-me um bocadinho do teu amor     todos os dias
não mo dês todo hoje        que amanhã vou precisar dele outra vez
eu sei      conheço-me bem
e nesse aspecto       sou exactamente como o resto da humanidade
preciso de ser amado todos os dias
só espero não morrer muito velhinho      para que o teu amor me
                                                                               [dure até ao fim da vida

joão negreiros, in «o cheiro da sombra das flores».

ontem peguei numa criança ao colo que quase me cabia na palma da mão (as minhas mãos são grandes), chorava e não me conhecia de lado nenhum.é filha de uma das amigas mais bonitas que tenho,das mais antigas e também das melhores. não precisamos de nomear as coisas e estamos bem assim. partilhamos cinemas, teatros, cafés, jantares de comida picante, saídas em dias sérios de inverno.a criança encostou a cabeça no meu ombro esquerdo, parou de chorar quando respirei fundo e fiz o meu coração bater mais devagar, de forma que a embalasse. a minha mão direita, a que escreve e tem,por isso, mais força, estava pousada do leve nas suas costas.sibilei uma canção de embalar, fiz-lhe uma festa na nuca frágil e deixou-se dormir. enquanto ela dormia, pensei nestes versos, do amor contínuo, em bocados infinitos, presente todos os dias. ter-se um filho é isso, se calhar, alguma vez o saberei?, falo de cor, ter-se um filho é gostar-se sempre de alguém, todos os dias, pois precisam do nosso amor, mesmo depois de nos irmos embora. em nome dos filhos diz-se tudo, faz-se tudo, pergunta-se tudo, e também, em nome dos filhos, se escolhe o amor ao medo, se escolhe o amor à solidão, se dão respostas a perguntas por fazer, se diz o que ainda não nos perguntaram, se luta até ao fim, preferindo sempre a derrota à desistência.


antes de sair, pousei-a ao de leve no berço que tinha vindo até à sala, a deslizar pelo soalho, para que aprendesse a dormir ao lado dos crescidos que conversavam. é importante uma criança aprender a dormir debaixo de luz, no meio dos sons e da multidão,ganha defesas para o que a espera daqui a nada, para a vida cheia, sonora, colorida, feliz, que a espera, impaciente.


"canção de embalar", zeca afonso, cantado por madredeus.

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