04 outubro 2004

a cheirar a mofo - dezembro de 2002

é quase meia-noite. há uns anos atrás ouvia um programa que se chamava à volta da meia-noite e soava como os cinco minutos de jazz da semana em versão demorada. ouvir senhores a tocarem instrumentos sem terem uma voz bonita a dar o mote foi coisa de que aprendi a gostar com a chegada das insónias e com a lassidão do domingo à noite. cheirava a roupa passada a ferro e a maçãs assadas. havia sempre um gato a dormir no tapete perto da banca onde a água pingava a desafiar o senhor do trompete, do saxofone ou do piano. era domingo e havia jornais sobre a mesa e o rádio já silenciara os relatos de futebol da tarde desportiva. havia cestos de vime forrados a panos de linho poídos, plenos de carcaças douradas de pão. nos pratos de louça arrefeciam ainda os bolos da tarde. havia sempre uma caneta no parapeito do banco pregado à parede e os jornais eram riscados e desenhados como se se estivesse ao telefone. hoje é terça-feira e continua a chover. hoje há um senhor que toca trompete dentro do computador e lembro-me de quando era míuda e ouvia vozes dentro de um automóvel grande, imenso, de estofos vermelhos com um volante maior que o perímetro da terra. mas não estava lá ninguém, ninguém no banco de trás,ninguém nem escondido dentro do motor. lembro-me de, a medo, empurrar para dentro, com o dedo indicador direito da curiosidade, a patilha que tapava a entrada das cassettes: lá dentro havia uma luz que parecia acesa para ninguém. depois convenciam-me que não era suficientemente rápida, que os senhores das vozes se escondiam pois pressentiam a tempo a chegada do meu olhar inquisidor. apercebi-me quando comecei a ouvir esta música estranha, só com sons e que soava sempre a improviso que assim se podia falar ou calar sempre, que a música estava ali mas era como se não estivesse e estivesse ao mesmo tempo. recheava silêncios que não incomodavam e sublinhava palavras só com linhas coloridas, como se não escrevesse nas margens. estamos em março e continua a chover como se já fosse abril.no porto falam de pontes e de rios revoltos e de cidades viradas do avesso. quer saia à rua, quer entre em casa, no barulho da chave na porta, ao raspar das solas no empedrado, do empilhar de livros, ao recortar de jornais, no silêncio do anoitecer ou no dealbar da manhã, a música que desenha linhas coloridas é sempre a do senhor do saxofone com um piano perto, às vezes com uma bateria a compor o ramo. parece que é sempre domingo. há coisas que fazem a vida parecer um filme. olá,mãe.olá,pai. recebam um beijo grande desta menina que nunca mais cresce e que acena daqui tão perto.

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