13 julho 2018

dos jardins como persistências





ontem à noite, já madrugada, o rapaz do café Bop virou-se para mim e disse, como só os rapazes da sua idade sabem dizer : "oiça lá, aquilo que me pediu para pôr aqui a tocar e que eu não tenho, mas vou ter, é brutal, brutal, mesmo brutal. estive duas horas e meia da folga a ouvir, nem dei pelo tempo passar." sorri-me, sorri-lhe. (é por aqui que vamos : pela repartilha do que nos endossam, até que se democratize, que não se rompe, não se gasta, não se banaliza). ele ouviu duas horas, eu ouvi umas vinte. passei a trazer a música encostada quase sem distância, aos ouvidos, a passar quase directamente da caixa de música para dentro da cabeça, para não se dissipar no ar e no barulho, para chegar mais inteira, a ver se assim calo a voz que não se cala dentro da minha cabeça, reclamando pelo que se adia, se empilha e não se faz sozinho; é um expediente para poder fazer a cabeça escrever as coisas do dia a dia, pela noite dentro, quando já não há nenhuma luz acesa em volta além da minha. há dias, parada no semáforo da álvares cabral, quase na praça da república, desprezei a luz verde que chegou, e tirei esta chapa : porque me lembrava o jacarandá que foi cortado do arranque da rua da bandeirinha; porque me lembrava um chão de combate que a música de kamasi washington traz consigo; porque quando as casas ardem, e se arruínam - como a da alliance française que ali estava, que me fez chorar quando vi o rescaldo do incêndio, que levou os interiores de filme, com ecos, cheiro a cera e vidros pintados e os livros - , são os jardins que, descuidados, entregues a si mesmos, se tornam excessivos e transbordam de si, e fazem desabar, no passeio, nos muros, nas ruínas, as flores assim. os jardins é que são os lugares persistentes, as memórias perenes quando as casas e as pessoas se vão. o condutor do carro atrás do meu teve a mesma paciência silenciosa que outro tivera, há uns anos atrás, quando fiquei pasmada a olhar o jacarandá florido da rua da bandeirinha. estariam também comovidos com as árvores que regressam apesar do tempo, ou precisamente por causa dele, e nos mostram a passagem do nosso?


https://youtu.be/rtW1S5EbHgU

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