05 outubro 2004

cheirar a mofo - outubro de 2001



sr.antónio lobo antunes,

estou em lisboa e é dia cinco de outubro. é feriado e não saí de casa todo o santo dia, que é coisa herege para se dizer em dia de comemoração de república.
a chuva demorou a abrandar e deixei-me estar aqui a martelar umas teclas mais teimosas que outras. o tempo foi passando e, quando dei por mim, tinha uma longa carta escrita, duas páginas de prosa, um imenso recado, para apertar num envelope e mandar a um senhor que recebe muitas cartas de meninas e meninos, a pedirem o mesmo que eu, a pedirem para deixar pousar os primeiros dedos de um pequeno pé do lado de dentro da soleira da porta de um espaço que sempre imaginei escuro, quando sem vozes logo nos imaginámos no escuro da cegueira.
um estúdio de rádio seria sempre escuro, o éter nunca poderia ter cor, quando muito o vermelho que diz "NO AR" ou então, mais à frente, a penumbra quebrada por luzes amareladas, de contornos desfocados, antes reservadas para os espelhos dos camarins da actrizes bonitas, esplendorosas, agora em volta dos espelhos na mais banais das casas-de-banho, fazendo de quaisquer uma estrela do glamour, com direito a uma esperança de arrebatada paixão, arrefecida quando se desfaz a cortina de fumo e do outro lado não está bogart.
nos seus livros fala sempre de sons e de quadros e de cores, de janelas, muito sempre de janelas, daquelas que recortam um pedaço do mundo, desenham uma negritude em volta, como se fosse uma fotografia de contornos carregados de robert frank, com contornos pesados como os da boca de uma mulher que se fechou à chave, apesar de sozinha em casa, quando ninguém a poderia surpreender,a experimentar aquela côr mais garrida e se deixa ficar, perdida das horas, a olhar-se demoradamente ao espelho.
ouvi ontem, depois de sair do metro no chiado, aquela música desfiada ao lado de um piano doce, que falava de uma janela que se fechava como um ovo, uma janela onde não há espaço entre o vidro ondulado, derretido em direçcão à soleira da porta, e as àrvores estáticas, pejadas de pássaros barulhentos nas árvores da praça, às cinco da tarde. depois ouvi uma outra música que não sabia que também trazia uma janela dentro, falava de uma janela quase câmara estática, que não persegue ninguém, antes deixa que tudo desfile perante si, uma câmara mais estática que uma máquina fotográfica assente num tripé a tirar fotografias tipo passe. e é essa janela o contorno negro de um desfile mais negro, ainda muito longe do carnaval.
antes de inventarem o passe social, chamavam o quê a estas fotografias? ou não chamavam nada, porque foram inventadas para esses cartões, mostrados a quem não olha para eles, exibidos maquinalmente por quem não olha para quem não olha para si .e depois convivem na mesma carteira fotografias de décadas diferentes, cartões de cores garridas, feitios quase iguais, e quando se encontra um cadáver no rio, esses cartões vêm empapados, numa massa disforme e não ajudam a desenhar o rosto de quem se quis perder e afinal foi encontrado.
sempre me lembro de ver os seus livros nas prateleiras mais altas da estante do meu pai, faziam parte daquele ramalhete que só leria mais tarde, quando fosse mais crescidinha, não fosse saber antes do tempo o que a vida traria dentro e assim não querer crescer. achava curioso que um deles trouxesse na lombada uma expressão que se ouvia à mesa e que depois não me deixassem ler o que vinha dentro do livro que me mirava lá de cima, perto do candeeiro, desde os trabalhos de casa até ao fim do jantar.
o tempo passou e o primeiro livro que li seu não foi surripiado da estante do pai, comprei-o num dia que já não era dia, era noite, quando ao ouvido mas à distância me disseram logo pela manhã que podia escrever uma carta e deixá -la chegar a ser um livro inteiro. na prateleira mais alta da estante, como lá atrás, havia um livro com uma lombada verde onde se falava de crocodilos. estiquei um braço, fi-lo descer. reminiscência árabe ou escrita canhota por resolver, sempre abri livros e jornais da direita para a esquerda, e foi assim que li na última linha "esta carta tão amiga endereçada a ti". as páginas do livro eram amarelas e a letra era garamond, tamanho dez, reconhecê-la-ia ao longe, mesmo sem semicerrar os olhos de míope. trouxe o livro, vim embora. nessa madrugada cheguei depressa até à menina que voava nos braços do tio que Ihe permitia ainda no verão alcançar as fitinhas do natal que estava ainda longe de chegar.
depois o livro trazia dentro atentados lentos, mulheres que se viam imensas, cafés sonhados em espinho, ilhas de madagáscar, doenças longas, tranças apertadas com aguardente, um sol que entrava em casa e não parava quieto, receitas de coca-cola, meninas escondidas debaixo da mesa, aos tombos dentro de um carro, paradas em frente ao tejo a ver um homem desastrado com a vida a pescar sem talento.
quando terminei este seu livro, estava sentada no cais do sodré, com os pés à distância segura da água. havia homens aninhados como asiásticos, outros encostados aos restos da alma do domingo à tarde, outros ainda sentados ao meu lado, a verem uma menina a escrever depois de acabar de ler, a fitarem, dali a cana que haviam deixado à sua sorte, pousada entre os cestos e dois paralelos de granito roubados, chutados como bolas de futebol desde terra mais firme até quase ao tejo.
subimos ainda até sta. catarina, para vermos o tejo sem navios e o miradouro sem veIhos a dizerem à morte que esperasse ao menos o fim do torneio, lá mais para perto do outono.
o dia estava visto. descemos a rua do alecrim que cheirava a lodo, julgando os turistas que era a mar. fomos pousar os dedos frios em frente aos copos de cerveja do bar onde o relógio gira ao contrário e os empregados estranham ver olhos quase a marejar antes da primeira golpada na espuma densa como a das marés vivas e sérias de agosto, na praia da apúlia, quase na galiza, como oiço aqui.
rodámos depois para casa, guiadas pelo odor das especiarias armazenadas numa das sobreloja do prédio. pelo crivo das janelas que acompanhavam os degraus escuros ouvíamos pássaros e sombras de árvores negras, que não havia naquela rua. entrámos em casa e na janela chocalhava o espanta-espíritos que denunciara a nossa chegada. pousei o livro no sofá maior e mais gasto e deixei as portadas da janela abertas. o livro ficou pousado quase no escuro, como estivesse no éter lá do início. e foi debaixo daquelas duas luzes que depois me apercebi que o lera. só na noite do dia seguinte o recolhi.
obrigada por este livro.e por ter chegado até aqui.

05.outubro.2001.





1 Comments:

Blogger JTF said...

Até me fazes ter vontade de fazer nova tentativa de gostar de Lobo Antunes... Acho que seria a 43ª!...

4:37 da tarde  

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