12 junho 2005

domingo à tarde

Um país de procissões, de bandas de música com pautas presas com molas da roupa, com nevoeiro frio nos dias de quase verão. Há gente que se vem sentar à mesa do café a desfolhar jornais da direita para esquerda, reminiscência de hábitos muçulmanos e fica tardes inteiras em silêncio, sem um sorriso ou sem um berro : este é um país que ama e se cala sem um ai. Amanhã é segunda-feira outra vez e não sei por que razão este país tanto chora pelo fim-de-semana, se depois quando este chega, “vai para as hortas na pessoa dos outros”.

No outro dia, já era de noite, andava pelas ruas da baixa a mostrar a cidade a quem cá estava como turista e me fazia assim de turista também, em vez de guia. Traduzia de cor mas de coração, a um negro retinto, violinista da costa do marfim, o que dizia uma inscrição na parede de uma livraria na rua de Ceuta. “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, encerro em mim todas os sonhos do mundo”. Acho que foi este um dos motivos que me fizeram sair daquela rua – o que querer ser tudo o que encerro em mim, ficando insatisfeita por só em sonhos poder ser quem quiser.
Depois, um grafitti fazia uma linha na parede e um sulco no meu coração : lembrava “o meu abraço tem a forma do teu corpo”. Percebi e expliquei o que é trazer-se nos gestos a memória do corpo se abarcou em tempos, mesmo quando se entalam as mãos geladas nos braços cruzados, se desembrulham os caracóis emaranhados ou se deixam os braços acompanharem os movimentos do corpo que caminha desengonçado ao longo do passeio.

A música do café espelhado e pintado de azul mistura-se com o som dos trombones, dos fagotes e dos bombos da banda que passou lá fora mas que deixou o som para trás, como se esquecesse dele ou como se quisesse levar consigo quem se deixa ficar, no passeio, de mãos nos bolsos ou a cofiar os caracóis macios das crianças. A banda passou e as pessoas continuam caladas, só abrem a boca para engolirem o chá ou para comentarem que nem parece que é quase S. João. Apetece-me perguntar-lhes se saltariam a fogueira com quem trazem sentado frente a si. A música calou-se e só se ouve o barulho da loiça e da máquina do café. Gostava que o empregado ao passar, deixasse cair, com um grande estrondo, uma bandeja pejada de pratos e garrafas, para, por um segundo, por duas pessoas da mesma mesa a fitarem o mesmo e assim acordarem.

Relembro-me do que disse Berenice, no teatro de quarta-feira passada, “amo-te e vou-me embora, amas-me e deixas-te ficar”. E invento que estas pessoas se sentam à mesma mesa, deitam-se na mesma cama e se deixam ficar, nenhuma delas se vai embora, por não perceberem que deste modo ficam ainda mais sozinhas. E recordo que era esta a peça de teatro que representavam no filme “O gosto dos outros”, de Agnès Jaoui, onde um homem ganha a coragem de deixar a mulher com quem não está, desde há muito tempo, para ter a desfaçatez de dizer à mulher por quem se apaixonara que é com ela que quer ficar. Corajosos, os franceses. Também no filme de André Techiné, que vi deliberadamente sozinha, “Les temps qui changent”, há um homem que perde a vergonha da sua idade e tamanho e o receio de um redondo não, decide rejoindre a mulher que sempre amou, mesmo depois do que a passagem das horas de espera fez a ambos.um dia...



confeitaria Tavi,no porto.café sem açúcar e bolo brigadeiro.

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