19 janeiro 2005

chão gasto

hoje, depois de uma leitura de sentença atribulada, fui espreitar, pelo lado de dentro, a janela que me passou ao lado, de raspão, na viagem vertiginosa da chegada ao marco de canaveses.há anos tirei-lhe uma fotografia, que trago pendurada na parede sangue de boi, à esquerda da virada a sul, na minha sala de trabalho.então, pousei o cotovelo no peitoril de mármore da janela rasgada ao baixo,voltada para os telhados das casas, para a bomba de gasolina e para a serra.fiquei à espera tanto tempo,rente à parede e ao vidro,que já sentia o frio da pedra mármore quando disparei.

os sinos ribombavam com força quando entrei.a porta gigantesca estava fechada,dei a volta pela esquerda e dei com um letreiro que dizia "mantenha a porta fechada. aquecimento ligado". depois pensei no absurdo de manter a porta fechada e assim nunca entrar. como naquela tira do quino, em que na porta do chefe se dizia,"feche a porta antes de entrar".quantas vezes não li este aviso onde ele não estava escrito?

uma mulher reunia as cadeiras para longe do altar, alinhando-as perto da porta fechada e deixando-as quase sobrepostas,corridas como bancos, sem distância para um mortal se sentar.reparei então no chão gasto, raspado,riscado sempre com o mesmo ritmo.aproximei-me das filas das cadeiras ainda intocadas e percebi que o chão gasto entre uma cadeira e outra, era marca dos pés impacientes.

foi aqui que vi pela primeira vez cadeiras isoladas num igreja, em vez de bancos corridos.depois, reencontrei-as na igreja de saint germain de près,em paris.aí pensei - veio de longe a ideia. mas depois,quando vi as cadeiras da igreja de s.domingos,em lisboa,aqui ao lado, percebi que,às vezes,vamos buscar longe o que se explica tão perto.e dei-me conta que são muitas as vezes que as coisas estão perto de mais para as vermos.

mas na igreja de s. domingos,as cadeiras surgem unidas por travessas, pregadas à frente e atrás, a cercear-lhes a liberdade de desalinho.nas costas de cada cadeira, há um cabide, para senhores pousarem chapéus, para as senhoras desnudarem as mãos das carteiras.como se nas costas do fiel da frente pousassem o seu fardo, como assim se libertassem do que tolhe a cabeça que pensa, do que lhes enche as mãos ocupadas, entretidas com objectos,vazias de gente.

regressei ao porto já debaixo de chuva, daquela séria, que faz os carros leves deslizarem nas curvas apertadas, pronunciadas à direita.vencida a escadaria e chegada à minha sala voltada a sul, passei a mão esquerda ao leve pela fotografia e sorri-me satisfeita por saber que ainda diz a verdade.


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