05 fevereiro 2006

morrer-nos gente

a viagem de sábado ainda a trago comigo : o sol de frente no asfalto, as matas ardidas do verão, o cheiro das duas cigarrilhas fumadas seguidas no adro da igreja (a entreter a espera, enquanto o padre ausente de si debitava um discurso automático sobre dor e vida eterna), o som compassado e quase militar dos passos no caminho empedrado de calcário, da igreja ao cemitério, a terra a cobrir o caixão e este a tocar a oco, como se o morto não estivesse lá.

fui enterrar o pai de um amigo. não tenho frequentado funerais pelos mortos, mas pelos vivos. sou uma mulher cheia de sorte – não me tem morrido ninguém de monta. pelo que também nunca sei muito bem o que dizer nestas alturas : limito-te a estar lá, dar um abraço, afagar o cabelo, tentar suster do lado de cá quem parece, às vezes, querer ir também com quem se foi embora. quisera entregar o livro que me fez deixar de temer a morte de quem mais se gosta, mas esquecera-o quilómetros atrás.

lembrei-me entretanto, de um filme que vi, a desoras, há semanas : falava de um homem que sabia estar a morrer e que, aos poucos, se ia despedindo dos que, serenamente, deixaria para trás, deixando como recado maior que assim que se aprenda a morrer, logo também saberá como viver. depois, para saber o que diriam os seus no seu funeral, antecipou-o, fazendo-o em vida – ouvindo as músicas, as homenagens e confissões, feitas em tempo, de quem o queria bem.

naquele funeral, a família não falara nem fora chamada para isso. talvez a dor fosse demais e o padre incapaz. mas dizer-se aos outros como era quem se foi embora (sempre, sempre antes do tempo) e assumir-se ou extravazar-se a dor (que parece que agiganta cada vez mais e que impede a respiração), podia ter deixado os sobrevivos mais perto uns dos outros e, ao mesmo tempo, menos irremediavelmente distantes de quem partia.

o silêncio dos funerais contribui para pensar que a morte chega mais depressa quando nada se ouve, quando ninguém responde no eco, quando não há nem vozes, nem música, nem calor, nem livros nem nada.

deve ser por isso que trago a casa cheia de livros, que deixei brad meldhau a tocar ineterruptamente, (como se antecipasse os encores do concerto de sexta que vem); foi por isso que esqueci, de propósito, abertas às escancaras, as janelas viradas ao exíguo pomar de laranjeiras – quando lá chegar, já noite fria, saberei que o sol da tarde andou por ali. é por isso que dou comigo muitas vezes a falar sozinha, contra os objectos que não sei onde perdi e contras coisas em que tropeço; é mesmo por isso que dou comigo a recitar poesia avulsa escolhida ao acaso, em voz alta, a meio da madrugada; e é por isso ainda que a primeira coisa que faço quando me levanto, é pôr a rádio a debitar as novidades sobre o mundo que já acordou há horas atrás, do lado de fora de mim. como se ouvir o que me dizem, aos berros, vertiginosamente, ou ao ouvido, quase sibilante, bem devagar, fosse prova bastante que ainda respiro, mais este dia, restando prometer-me vivê-lo de forma a dizer, no seu fim,“morria com o dia de hoje no olhar”.



“fazes-me falta”, inês pedrosa.
“tuesday’s with morrie”, de mitch albom.

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