05 março 2007

cameleira florida

o que te digo é que as cameleiras já estão floridas, passei agora por elas sorrateiramente, como um gato que passa rente ao muro sem querer acordar o sol, como se elas dormissem e não quisera que deram pela minha passagem.virás este ano confiar-me a flor do ano passado?

estou na biblioteca do palácio de cristal, onde regresso tantas vezes e sempre me lembro de ti. como se, desde que chegaste à minha vida, se tivesse dissolvido a memória que tinha dos lugares antes de ti.e não é justo, nem com os lugares, nem contigo.nem comigo, adivinharei mais tarde.

oiço chavela vargas. aqui encontrei outra versão daquela música de que me apontaste um verso e descobri, num ápice, a letra toda.agora,com esta coisa da internet, por uma palavra só se descobre o verso todo, por uma linha se chega ao romance inteiro.já não andamos anos a fio a esperar encontrar de novo, o nome daquilo por que queríamos chamar.a noite do meu bem chama-se aqui la noche de mi amor. do meu bem ao meu amor vai um passo vasto- eu
soube-me teu bem,tua linda, mas nunca teu amor.não me trago triste por isso.

e depois a música traz um ar de choro, de comoção,que não tinha na outra versão que ouvi. é por isto que quem interpreta,também acrescenta. aqui, chavela vargas quer para dar, quer o mais bonito das coisas bonitas, para brindar a noite do seu amor, mas a forma como chora a letra faz antever que ficará à espera no cais, não fará diferença os enfeites que recolha para pousar no colo de quem quer bem.

não te darei notícia disto, aliás, é assim que tenho estado, calada, por escrever, por dizer : calei as páginas que sublinhei no babelia do el país de sábado, calei a luz que devorei na esplanada do adamastor voltado ao tejo, no chá da tarde, calei a lista de spas aqui ao alcance da mão, calei a poesia que li na viagem, calei o meu choro e a minha necessidade de colo quando saí de mais uma visita ao meu amigo maior. calei ainda a minha supresa por me rever ainda no into my arms, de nick cave, eu atéia, eu, assim,à espera, depois deste tempo todo, sapiente da impossibilidade do resultado, por todas as razões e mais algumas, as maiores, do coração.

aqui à volta há meninas que, à régua, desenham riscos, entre uma linha de texto e a outra. tenho quase vontade de lhes dizer que se deixarem a caneta colorida de lado, que se sentarem apenas a ler, ler, ler para frente, lerão mais e melhor. mas não me parece que me levassem a sério, se lho dissesse. estão ainda naquela fase em que sublinham segundo um secreto código de cores, como se as cores das pinceladas fizesse diferença séria para se lembrarem do seu teor.

censuro-as, mas ainda hoje fiz rir o arquitecto da reunião da tarde, quando lhe disse que texto que procurava ele e lera eu, estava no topo norte do texto, numa coluna à esquerda. sem nada a assinalá-lo, sabia de cor da geografia do seu lugar. com o tempo, fui descobrindo que importa não saber de cor as frases dos outros, mas sim saber, de coração, qual o caminho que retivemos no nosso percurso até elas. em milhares de páginas da rosa do mundo, sei onde estão os versos que te quero ainda ler, sem que tenha esquinado páginas ou lá deliberadamente esquecido bilhete de concerto ou fotografia recortada.

comigo, quanto mais vasto é o livro, menor é o risco de não encontrar aquilo a que se quer regressar. deve ser por isso que te entreguei tantos livros de esconder no bolso, com páginas esquinadas, ainda sem perceber por que julgo maior o risco de perda do recado num livro com menos páginas.


exposição de camélias, palácio do freixo, 10 a 12 de março.
50 anos de gravura, fundação cupertino de miranda, a partir de 10 de março.

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