06 junho 2007

recado

fado alexandrino

amanhã chegaste à minha vida
e disseste bom dia e era noite lá fora
puseste-me na mesa o prato da comida
acenaste-me adeus e não te foste embora

e como era manhã vestiste o meu pijama
tomaste um comprimido para dormir acordada

como era hora do almoço chamaste-me para a cama
como era hora da ceia bebeste-me ensonada

e quando temos frio aquecemos à lua
as mãos que penduramos na corda de secar
quando mais roupa trazes, mais eu te sinto nua
e quando mais te calas mais te sinto cantar

vitorino canta lobo antunes.

não é de hoje que vou ouvir música para me distrair de ti e trago de lá recado de que não andava à procura. depois, logo no verso seguinte, pergunto se seria eu quem te sublinhava o verso ou se seria o inverso, como naqueles versos de sophia que trago colados à parede.

pendurei dois quadros novos na minha sala : a biblioteca de fogo e o pintor e o modelo. pendurei-os na madrugada, os vizinhos terão perdoado o barulho e percebido a urgência do capricho. ao contrário do filme, o quadro não ficou na árvore nem ninguém me amparava quando me empoleirei em cima da mesa. mas também não fez falta - só faz falta o que se tem, disse-me a minha mãe tantas vezes, enquanto me ensinava a abrir frascos teimosos na torneira da água quente e a perder o medo de cair das cadeiras mais altas.

vejo a biblioteca quando estou sentada no sofá e para ver a mulher sentada nua no chão em frente ao homem que a pinta, saio do sofá, ponho-me de pé, de costas para a biblioteca. que é como quem diz, sento-me para enfrentar os livros que ainda me ardem (porque os li contigo ou porque não os lerei de todo e era-nos importante) e levanto-me para olhar a mulher que é retratada, vejo que o pintor a fita não a retrata, os seus pés tocam-se, reparo que há quem não saiba manter a distância e assim o que está do lado de fora nunca mais sai também do lado de dentro. que é como quem diz, trazemos os livros às costas e à cabeça quando olhamos os quadros, fitamos os livros e levamos como pergunta as imagens para que queremos legenda. que é como quem diz, há livros dentro dos quadros (e versos a fazer desenhos, como naquela exposição de melo e castro em serralves) e há cores dentro dos livros, filmes inteiros retratos escritos do que somos nós. ou do que não seremos.

lembrei-me de quem uma vez, entrado em minha casa, percebeu à cabeça que la femme au mirroir era usado para legendar um espelho onde me via eu quando chegava sempre noite escura e onde me mirava de raspão antes de voltar a sair, para saber se cara que levava à rua era a que merecia o dia novo. é um luxo usar-se picasso para fazermos legendas à nossas caras, disse, sorriu-se para mim, rimo-nos ambos. ganhei nesse dia um sério critério : nunca aceitar para o lado de dentro da minha porta quem não tenha sensibilidade ou curiosidade para querer perceber os recados que tragos pendurados nas paredes, pousados no chão. como a fotografia da escada em caracol que parece um limão, que traz acima de si o coração em vitral dividido (ou unido?) pelo meio.

trago o cabelo quase rente, talvez mais esta vez tenha passado uma tesoura nos caracóis para ver se deixava de sentir neles os teus dedos, para poder dizer que o frio que sinto (agora que é quase verão) vem do cabelo deixado no chão, perto do mar. no outro dia, uma menina trigueira que fala como se escrevesse versos, perguntava-me "também tu trazes o coração na pontinha dos cabelos?" sei hoje que não, ou já me tinha passado a dor. mas é estranho, quanto mais corto o cabelo mais me fitam na rua, mais me sorriem, mas devo trazer-te ainda na retina e nota-o quem me fita. um dia...

vitorino na casa da música, 31.05.2007.
biblioteca de fogo,vieira da silva.
o pintor e o modelo,pablo picasso.

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