21 março 2007

escrever o chão


desde que vi esta ilustração no babelia de sábado, que a associo à fotografia a preto e branco, que defrontei há meses, na galeria quadrado azul.

mas aqui, estas mãos entretecem o chão de um continente inteiro, não esperam quem virá de viagem (de perto ou de longe), como as mãos da penélope, que trazia vestido o emaranhado ordenado da sua espera, como se a espera lhe recobrisse o corpo.

aqui, a escrita também se tece, mas a teia que a escrita faz está do lado de fora, é chão que se pisa, caminho para longe, haja coragem.

há pouco, luísa costa gomes dizia que "um bom livro é o livro que me faz escrever". é verdade também comigo, os bons livros têm-me feito escrever, chorar, gritar madrugada alta contra laranjeiras já surdas, contra cadernos esgotados; arranham-me a pele por dentro, trazem-me acordada de noite e irrequieta de dia. é como se fossem todos livros de desassossego. quando encontrei ricardo reis, conclui isso, que quem quer sossego não abre livros. desde então, sempre que abro um livro, de algum forma, trago isso presente, é risco que aceito e procuro. mas depois fico assim, dias a fio, a digerir, a acomodar, a revolver.

lembro-me de ser míuda e passar na televisão uma propaganda que dizia "leia um livro e seja quem quiser." algumas vezes terá sido assim, lido o livro, foi como se tivesse vivido eu a história que nunca cumpriria do lado de fora (como com Madame Bovary, de Flaubert). noutras, a maior parte delas, as personagens foram umas vezes espelhos, outras prenúncios. daí o desassossego.mas não sei ser nem quero saber de ser de outra forma.


"pecados íntimos", de todd field.

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