10 dezembro 2006

vazio estruturante?

Por agora ficamos em que há amores dos que amam e dos outros, que são, de resto,mais duradouros e de se trazer por casa. Com estes faz-se tudo o que se quer. Fazem-se famílias inteiras, sexo e até má poesia.”

agustina bessa luís, in "a ronda da noite".


sabes?,abri ao calhas este livro que anda a ler a menina que fui confiar a mais um avião e encontrei esta frase. não sei se me assusta mais por ser "espelho em que me reconheço", se por me ter forçado a tomar consciência que o amor da raça dos primeiros nos deixa mais vazios, mais à toa, mais sozinhos, do que sermos "amados por engano".

há meses que ando para te escrever mas tenho-me contrariado - escrever-te uma carta daquelas em papel ou destas velozes, implica aceitar que estás a vários países de distância, que não posso dizer-te "anda daí,preciso de um chá", porque não vais poder tu, nem vou poder eu, brincarmos às meninas caprichosas e apanharmos um avião para isso, só por isso, que era tudo (como diz o nome comprido de uma loja ali às antas,"oh!era mesmo isto o que eu queria").

escrever cartas é assumir a distância e ao mesmo tempo,confessar a vontade de a superar. ou então de a impor de vez. eu tenho andado assim, há meses, a escrever cartas a julgar que daí advirá a coragem para me ir embora (de muita coisa, de tanta gente), a escrever cartas por julgar que servirão para me trazerem para mais perto quem parece querer fugir (de si mesmo até) mas não consegue deixar de prometer que volta (só não sabe é quando).

sabes, mulher?, eu vou sabendo, que se me perguntassem o que é essencial nas mulheres portuguesas, respondia que é o escreverem sempre muito (eu sempre demais), como se por serem lidas (as mulheres e as cartas), os homens as ouvissem falar,a sério, essa vez só que fosse. como dizia um dos filósofos gregos (sócrates?aristóteles?), que cito de cor, a essência é o que faz uma coisa ser aquilo que ela é. escrever cartas a quem quero mover ou demover é-me essencial, mas mais do que isso, é atributo essencial da mulher que sou; suspeito que as escrevo por causa da mulher em que me quero tornar.

hoje fui a um sítio aonde nunca te levei, nos meses todos que cá vieste ao porto, andava eu fugidia por lisboa. na altura, também não havia este motivo maior, que é a obra de ampliação do palácio dos carrancas que fernando távora tão docemente engendrou.

como menina pequena que insisto ser, olhei estática o céu que recortavam as janelas do corpo novo - e depois, fazendo de conta que não percebera o objectivo daquelas cadeiras perfiladas antes do primeiro degrau da escada, fui perguntar a um dos rapazes que tomava conta de uma das salas, se não podia ir àquele lado superior do jardim. mostrei-lhe o meu desenho torto feito a caneta de feltro indelével, no guia do museu, justifiquei-me dizendo que aquilo não fazia sentido, que tinha de estar a faltar um patamar do jardim e que era meu desejo vê-lo. que não, que lamentava, que “o jardim não estava acessível por falta de pessoal para vigiar porta, jardim e visitantes”. ainda me perguntou "é arquitecta?", sorri-me, “não, sou só curiosa, mas se para me levar àquela parte do jardim precisar que lhe diga que sim, passarei num ápice a ser”, sorri-me eu, rimo-nos ambos. em passo lesto, subimos as escadas, abriu a porta vasta que dava para o jardim, entalou uma cadeira na porta "que só dá para abrir por dentro e se calhar não vai querer ficar fechada do lado de fora", fiz de conta que sim, que não queria ficar ali, presa naquele jardim por tratar,naquele resto de espaço, naquelo bocado de socalco que permite ver todas as varandas que, da rua, até ali e então, só pudera adivinhar.

sabes, continua a ser verdade aquela frase que nos relataram daquele senhor de olhos azuis, que nos morreu antes de aprendermos com ele o que precisavamos,"é preciso assomar a diferentes varandins para vermos a mesma realidade." apeteceu-me ter dito isto ao rapaz que me salvou a manhã ao acudir-me ao capricho; mas, curiosamente, quando lhe disse que percebera então por que razão aquela casa da rua do rosário tinha sempre fechadas as janelas voltadas para rua, porque preferia a casa fitar antes do jardim do palácio, mesmo que alheio, precisamente porque alheio, o rapaz sorriu-se e confessou-se "acho que nunca tinha vindo aqui e muito menos pensado nisso; era como se passasse na rua e não percebesse o que se passava do lado de dentro do quarteirão. agora já sei, olham as casa para o nosso jardim", e acrescentei eu,"jardim esse que vocês próprios não olham, adivinho." não se sentiu repreendido, ainda me disse "acho que agora virei cá mais vezes". desci as escadas, agradeci a intromissão concedida de visita àquele espaço aberto. confirmei, ao olhar aquel miolo vazio, aquele terreiro entrecortado, que tinha razão aquela arquitecta que falava há dias na tsf,sobre o que escrevera outro par, sobre a capacidade de os espaços vazios poderem ser estruturantes, serem o fio condutor que permite à cidade respirar.sabes?, quem vive naquele casa com ardósias em forma de escamas de peixe e um alpendre soalheiro, só suporta a cidade barulhenta da rua, por lhe voltar as costas e se espraiar para este jardim.

ainda voltei a ir ver a exposição de fotografia, numa sala sem luz natural e com recortes de pedras, de lençóis amarrotados,de árvores e de janelas e de céu, fotografias penduradas compassadamente nas paredes temporárias.como se precisasse de me certificar que estavam mesmo ali,que não as sonhara. sentei-me no chão de madeira, fiz da parede espaldar e fiquei ali a olhar, a ver, a reparar.(também assim se cumprem os livros que ainda trazemos na cabeça, estes anos todos depois).

uma das fotografias exibia um horizonte de pedra lascada, com arestas vivas, agressivas e contrastava com as fotografias da outra parede, de lençóis desalinhados, amassados pela noite e pelos corpos que já não estavam ali. perguntei-me se os lençóis de pedra, da cor do ferro, não seriam sedimentos de amores acumulados, dos “amores dos que se amam”, que terminam mas que,no entretanto (e, as mais das vezes, mesmo depois) são amores que rasgam a pele pelo lado de dentro, que nos apertam o coração até ele morrer de vez e deixar de sentir, daqueles amores que nos arrancam à letargia dos amores dos outros; são amores que nos desassossegam, nos revolvem, nos tiram a forma e a fome, o sono e a madrugada, nos fazem procurar poesia e música que nos embale a dor e a alegria; e são os amores a que nunca, nunca temos coragem dos nos render. assim falhamos a vida, mulher,e ao contrário daquele romance do Eça que nos deram a ler, começa, dolorosamente, a não ser verdade que, se corrermos a sério, que ainda o apanhámos, que ainda o apanhámos, esse amor.

daqui a nada estarás aí,na soleira da minha porta e eu dir-te-ei “estava a ver que nunca mais era dia. o chá está na mesa.” e então abraçar-nos-emos como sempre, como dantes e saberemos que nunca te foste embora. até já.


museu nacional soares dos reis,andré gomes, “lumen”.
“requiem pelas vitimas do fascismo”, fernando lopes graça.
“retábulo das matérias”,de pedro tamen.
o portugal de maria belo,rtp 1.