19 outubro 2004

o perigo da fadiga

há dias, na rádio por escrito,falavam dos perigos das viagens demasiado longas sem descanso.vieram-me à garganta as viagens feitas de um trago só, entre lisboa e porto,com tanta pressa para chegar. e depois senti nos pulsos a dormência dos passeios feitos devagar,pelo gosto da mecânica da condução, curvas às quinhentas, feitas para deixar de pensar. e depois senti na pele o voo recente,para entrega atempada de um envelope num aeroporto debaixo de chuva copiosa,que favorece a tristeza de todas as despedidas.

tentei separar águas e contar quantas vezes o cansaço veio da viagem e quantas vezes já lá estava antes dela. e só depois percebi que,afinal,eram ainda mais as vezes que a viagem era procurada pela fadiga que trazia ao coração e assim obrigava a cabeça a dormir.

06 outubro 2004

"this house is empty now"

era inverno e jantávamos ao som desta música,quando nem sequer suspeitávamos que um dia,um dia?,daí a pouco,esta mesma casa se iria encher de gente,escada acima,escada abaixo,transmutando-se num escritório que só a esta hora sossega.e ainda assim,se calhar nem a esta hora.

ainda não fechei a janela e passa das onze da noite.lembrei-me de uma tira do calvin,que falava de "dias tão cheios",quase como os de hoje.e de uma outra, que resumia o que vem sendo a minha vida desde que me conheço:

"horas de dormir???",
"foi o que eu disse."
"mas eu ainda não acabei o meu trabalho de casa!preciso de mais tempo!"
"ainda te falta muito para acabares?"
"só me falta escrever."

o só faltar escrever era já faltar muito pouco.depois fui percebendo que escrever leva sempre mais tempo do que se julga.mas que já só faltar escrever,umas vezes é faltar o menos,outras é faltar o essencial.como se a casa estivesse vazia.

"this house is empty now",elvis costello&burt bacharach.

pellow book

As que procurei em vão,
principalmente as que estiveram muito perto,
como uma respiração,
ou não reconheci,
ou desistiram e partiram para sempre,
deixando no poema uma espécie de mágoa
como uma marca de água impresente;
as que (lembras-te?) não fui capaz de dizer-te
nem foram capazes de dizer-me;
as que calei por serem muito cedo,
e as que calei por serem muito tarde,
e agora, sem tempo, me ardem;
as que troquei por outras (como poderei
esquecê-las desprendendo-se longamente de mim?);
as que perdi, verbos e
substantivos de que
por um momento foi feito o mundo
e se foram levando o mundo.
E também aquelas que ficaram,
por cansaço, por inércia, por acaso,
e com quem agora, como velhos amantes sem
desejo, desfio memórias,
as minhas últimas palavras.


manuel antónio pina,
"poesia reunida",edições assírio&alvim

05 outubro 2004

cheirar a mofo - outubro de 2001



sr.antónio lobo antunes,

estou em lisboa e é dia cinco de outubro. é feriado e não saí de casa todo o santo dia, que é coisa herege para se dizer em dia de comemoração de república.
a chuva demorou a abrandar e deixei-me estar aqui a martelar umas teclas mais teimosas que outras. o tempo foi passando e, quando dei por mim, tinha uma longa carta escrita, duas páginas de prosa, um imenso recado, para apertar num envelope e mandar a um senhor que recebe muitas cartas de meninas e meninos, a pedirem o mesmo que eu, a pedirem para deixar pousar os primeiros dedos de um pequeno pé do lado de dentro da soleira da porta de um espaço que sempre imaginei escuro, quando sem vozes logo nos imaginámos no escuro da cegueira.
um estúdio de rádio seria sempre escuro, o éter nunca poderia ter cor, quando muito o vermelho que diz "NO AR" ou então, mais à frente, a penumbra quebrada por luzes amareladas, de contornos desfocados, antes reservadas para os espelhos dos camarins da actrizes bonitas, esplendorosas, agora em volta dos espelhos na mais banais das casas-de-banho, fazendo de quaisquer uma estrela do glamour, com direito a uma esperança de arrebatada paixão, arrefecida quando se desfaz a cortina de fumo e do outro lado não está bogart.
nos seus livros fala sempre de sons e de quadros e de cores, de janelas, muito sempre de janelas, daquelas que recortam um pedaço do mundo, desenham uma negritude em volta, como se fosse uma fotografia de contornos carregados de robert frank, com contornos pesados como os da boca de uma mulher que se fechou à chave, apesar de sozinha em casa, quando ninguém a poderia surpreender,a experimentar aquela côr mais garrida e se deixa ficar, perdida das horas, a olhar-se demoradamente ao espelho.
ouvi ontem, depois de sair do metro no chiado, aquela música desfiada ao lado de um piano doce, que falava de uma janela que se fechava como um ovo, uma janela onde não há espaço entre o vidro ondulado, derretido em direçcão à soleira da porta, e as àrvores estáticas, pejadas de pássaros barulhentos nas árvores da praça, às cinco da tarde. depois ouvi uma outra música que não sabia que também trazia uma janela dentro, falava de uma janela quase câmara estática, que não persegue ninguém, antes deixa que tudo desfile perante si, uma câmara mais estática que uma máquina fotográfica assente num tripé a tirar fotografias tipo passe. e é essa janela o contorno negro de um desfile mais negro, ainda muito longe do carnaval.
antes de inventarem o passe social, chamavam o quê a estas fotografias? ou não chamavam nada, porque foram inventadas para esses cartões, mostrados a quem não olha para eles, exibidos maquinalmente por quem não olha para quem não olha para si .e depois convivem na mesma carteira fotografias de décadas diferentes, cartões de cores garridas, feitios quase iguais, e quando se encontra um cadáver no rio, esses cartões vêm empapados, numa massa disforme e não ajudam a desenhar o rosto de quem se quis perder e afinal foi encontrado.
sempre me lembro de ver os seus livros nas prateleiras mais altas da estante do meu pai, faziam parte daquele ramalhete que só leria mais tarde, quando fosse mais crescidinha, não fosse saber antes do tempo o que a vida traria dentro e assim não querer crescer. achava curioso que um deles trouxesse na lombada uma expressão que se ouvia à mesa e que depois não me deixassem ler o que vinha dentro do livro que me mirava lá de cima, perto do candeeiro, desde os trabalhos de casa até ao fim do jantar.
o tempo passou e o primeiro livro que li seu não foi surripiado da estante do pai, comprei-o num dia que já não era dia, era noite, quando ao ouvido mas à distância me disseram logo pela manhã que podia escrever uma carta e deixá -la chegar a ser um livro inteiro. na prateleira mais alta da estante, como lá atrás, havia um livro com uma lombada verde onde se falava de crocodilos. estiquei um braço, fi-lo descer. reminiscência árabe ou escrita canhota por resolver, sempre abri livros e jornais da direita para a esquerda, e foi assim que li na última linha "esta carta tão amiga endereçada a ti". as páginas do livro eram amarelas e a letra era garamond, tamanho dez, reconhecê-la-ia ao longe, mesmo sem semicerrar os olhos de míope. trouxe o livro, vim embora. nessa madrugada cheguei depressa até à menina que voava nos braços do tio que Ihe permitia ainda no verão alcançar as fitinhas do natal que estava ainda longe de chegar.
depois o livro trazia dentro atentados lentos, mulheres que se viam imensas, cafés sonhados em espinho, ilhas de madagáscar, doenças longas, tranças apertadas com aguardente, um sol que entrava em casa e não parava quieto, receitas de coca-cola, meninas escondidas debaixo da mesa, aos tombos dentro de um carro, paradas em frente ao tejo a ver um homem desastrado com a vida a pescar sem talento.
quando terminei este seu livro, estava sentada no cais do sodré, com os pés à distância segura da água. havia homens aninhados como asiásticos, outros encostados aos restos da alma do domingo à tarde, outros ainda sentados ao meu lado, a verem uma menina a escrever depois de acabar de ler, a fitarem, dali a cana que haviam deixado à sua sorte, pousada entre os cestos e dois paralelos de granito roubados, chutados como bolas de futebol desde terra mais firme até quase ao tejo.
subimos ainda até sta. catarina, para vermos o tejo sem navios e o miradouro sem veIhos a dizerem à morte que esperasse ao menos o fim do torneio, lá mais para perto do outono.
o dia estava visto. descemos a rua do alecrim que cheirava a lodo, julgando os turistas que era a mar. fomos pousar os dedos frios em frente aos copos de cerveja do bar onde o relógio gira ao contrário e os empregados estranham ver olhos quase a marejar antes da primeira golpada na espuma densa como a das marés vivas e sérias de agosto, na praia da apúlia, quase na galiza, como oiço aqui.
rodámos depois para casa, guiadas pelo odor das especiarias armazenadas numa das sobreloja do prédio. pelo crivo das janelas que acompanhavam os degraus escuros ouvíamos pássaros e sombras de árvores negras, que não havia naquela rua. entrámos em casa e na janela chocalhava o espanta-espíritos que denunciara a nossa chegada. pousei o livro no sofá maior e mais gasto e deixei as portadas da janela abertas. o livro ficou pousado quase no escuro, como estivesse no éter lá do início. e foi debaixo daquelas duas luzes que depois me apercebi que o lera. só na noite do dia seguinte o recolhi.
obrigada por este livro.e por ter chegado até aqui.

05.outubro.2001.





biologia

ontem,a desoras,o segundo biólogo do dia falava da paixão de editar livros e do critério da escolha ser o dos afectos - o de ter na sua editora as coisas que gosta de ler.e lembrei-me de duas linhas linhas de valter hugo mãe,seu co-editor,"meu amor inventado/ainda assim tanto demoras".vinham estes versos num livro com relógios gastos na capa, feita pela menina adriana, que em silêncio cantava uma canção de embalar gente crescida,"eu conto as horas pra poder te ver/mas o relógio esta de mal comigo".deve ter sido por isso que encostei os relógios esta semana.pode ser que assim o tempo passe mais depressa e o amor inventado venha num repente.

04 outubro 2004

rondar

pouco falta para fazer um ano que me entregaram uma caixinha de música que trazia dentro (parte) do alentejo desse verão.quando o coração aperta de saudades ou o mundo ribomba dentro da cabeça, quando a amargura leva a melhor ou é dia de festa brava,todos os caminhos vêm dar aqui.julgamos rondar esta música,mas é ela que nos cerca.

"a la puerta de mi amor
hay un lazo de algodón
todos passan y no se quedan
solo yo me quedo en prisón

tu que durmes en la ribera
acaso me podrás decir
cuantas horas duerme el água
antes de amanecer

tenho no quintal um limoeiro
junto ao canteiro da hortelã
ele dá limões o ano inteiro
eu em troca rego toda as manhãs

eu em troca rego todas as manhãs
isto é se não chover primeiro
junto ao canteiro da hortelã
tenho no quintal um limoeiro

la nostalgia hace sufrir
aún así la quiero bien
una nostalgia en la vida
pobre de quine no la quiere".

"o limoeiro" in "terra de abrigo"
ronda dos quatro caminhos e coros do alentejo
com a orquestra sinfónica de córdoba

a cheirar a mofo - dezembro de 2002

é quase meia-noite. há uns anos atrás ouvia um programa que se chamava à volta da meia-noite e soava como os cinco minutos de jazz da semana em versão demorada. ouvir senhores a tocarem instrumentos sem terem uma voz bonita a dar o mote foi coisa de que aprendi a gostar com a chegada das insónias e com a lassidão do domingo à noite. cheirava a roupa passada a ferro e a maçãs assadas. havia sempre um gato a dormir no tapete perto da banca onde a água pingava a desafiar o senhor do trompete, do saxofone ou do piano. era domingo e havia jornais sobre a mesa e o rádio já silenciara os relatos de futebol da tarde desportiva. havia cestos de vime forrados a panos de linho poídos, plenos de carcaças douradas de pão. nos pratos de louça arrefeciam ainda os bolos da tarde. havia sempre uma caneta no parapeito do banco pregado à parede e os jornais eram riscados e desenhados como se se estivesse ao telefone. hoje é terça-feira e continua a chover. hoje há um senhor que toca trompete dentro do computador e lembro-me de quando era míuda e ouvia vozes dentro de um automóvel grande, imenso, de estofos vermelhos com um volante maior que o perímetro da terra. mas não estava lá ninguém, ninguém no banco de trás,ninguém nem escondido dentro do motor. lembro-me de, a medo, empurrar para dentro, com o dedo indicador direito da curiosidade, a patilha que tapava a entrada das cassettes: lá dentro havia uma luz que parecia acesa para ninguém. depois convenciam-me que não era suficientemente rápida, que os senhores das vozes se escondiam pois pressentiam a tempo a chegada do meu olhar inquisidor. apercebi-me quando comecei a ouvir esta música estranha, só com sons e que soava sempre a improviso que assim se podia falar ou calar sempre, que a música estava ali mas era como se não estivesse e estivesse ao mesmo tempo. recheava silêncios que não incomodavam e sublinhava palavras só com linhas coloridas, como se não escrevesse nas margens. estamos em março e continua a chover como se já fosse abril.no porto falam de pontes e de rios revoltos e de cidades viradas do avesso. quer saia à rua, quer entre em casa, no barulho da chave na porta, ao raspar das solas no empedrado, do empilhar de livros, ao recortar de jornais, no silêncio do anoitecer ou no dealbar da manhã, a música que desenha linhas coloridas é sempre a do senhor do saxofone com um piano perto, às vezes com uma bateria a compor o ramo. parece que é sempre domingo. há coisas que fazem a vida parecer um filme. olá,mãe.olá,pai. recebam um beijo grande desta menina que nunca mais cresce e que acena daqui tão perto.

lisboa

"de cada vez que volto a lisboa,tenho a sensação de voltar a casa.",
diz um senhor com sotaque francês na tsf,enquanto escrevo contra a tarde que cai depressa demais e me diz que não vou acabar a tempo o que estou a fazer.recuperei há pouco a capacidade de dividir a atenção e ouvir entrevistas, noticiários e estados do tempo enquanto escrevo.e foi assim que,ouvindo sem estar a ouvir à séria, me entrou esta tirada pelos olhos adentro,que brilharam marejados - descobri que fora (também) por isso que,no regresso da viagem breve,trazia comigo "um nó na garganta".

03 outubro 2004

"era grave não termos"

fui à procura de um livro que já lera emprestado, de sopetão e que oferecera dias antes. ao rapaz a quem demandara por outros livros,noutros dias, pergunto-lhe por "nenhum nome depois" ao que me responde, depois de certeiro se dirigir à prateleira que o suportava,"era grave não termos." sorri-se e eu agradeço.
concordei em silêncio.

"Onde quer que o encontres -
escrito, rasgado ou desenhado:
na areia,no papel,na casca
de uma árvore, na pele de um muro,
no ar que atravessar de repente
a tua voz, na terra apodrecida
sobre o meu corpo - é teu,

para sempre, o meu nome."

maria do rosário pedreira,
"nenhum nome depois", edições gótica.

02 outubro 2004

"a pureza que se respira no alto compensa bem a fadiga da ladeira"(bento jesus caraça),disse-me uma vez um amigo a meio de um jantar de sexta-feira, citando de cor o matemático que procurei mais tarde, para perder o medo dos números.

já perdi muitas vezes o fôlego : a correr para comboios, a subir a couraça de lisboa, a galgar degraus dois a dois para não perder o café marcado no bairro alto, a voar para os correios dos aliados para fazer o correio seguir em tempo.

já senti muitas vezes o peso da exaustão, debruçada na minha varanda virada para um pomar de laranjeiras, no interior insuspeito de um quarteirão perto da rotunda da boavista.

e já soube depois abrandar, até conseguir ouvir a pedra da eira na serra da cabreira contar os seus segredos de um dia ao sol.

assim fui percebendo que assistia razão ao meu amigo, ao me avisar que a adivinhada fadiga do caminho não nos deve dissuadir de perseguir a montanha, mesmo sem sabermos se o ar que ali se respira terá o cheiro dos arbustos de aljezur ou das pedras de pitões das júnias.

e também fui percebendo que a fadiga que se abate sobre o corpo à medida que a ladeira se torna mais íngreme ou sinuosa,não pode ser motivo para não repararmos no caminho que se estende até à montanha.

do que se vê apesar da fadiga e por causa dela e do que se respira depois nas alturas, é sobre isso que escreverei aqui.