atravessei, quase em branco, a madrugada da
passada sexta-feira, tal como acontecera em 2011, no dia da morte do meu pai.
nesse dia, fui buscá-lo ao hospital de santo antónio, como combinado: aguardara
toda a noite pela nossa chegada, para que conseguíssemos levá-lo a morrer em
casa. que casa? a minha. no domingo anterior, perguntou-me “quanto tempo
tenho?”, e respondi-lhe com outra pergunta “queres mesmo saber?”. firme, disse
que sim, e acrescentou “eu tenho coisas para tratar e tu também”. quase em
lágrimas, admiti-lhe “pode precipitar-se a qualquer momento”. respirou a custo,
sorriu-se, e disse “sendo assim, começa a escrever e faz uma lista do que tens
para aviar. e vai-me cortar esse cabelo. e põe um fato e uns saltos no meu
funeral. e se mais ninguém disser mais nada, não me deixes ir sem dizeres
algumas palavras sobre o teu velho.” cortei o cabelo rente no dia seguinte, ida
e volta quase menos de uma hora; terei o fato do armário, que já nem para os
julgamentos o punha; e deixei-o a arejar, pendurado no lado de fora do
roupeiro; e sim, foi a última vez que o vesti, e a última vez que pus uns
saltos altos. lembrava-me de ser ganapa e de ver o meu pai no funeral do seu, a
única vez que o vira, desde que eu nascera e tinha memória, de fato e de
gravata. e a chorar. fiz-lhe o elogio fúnebre e pedi um aplauso para a sua
vida.
naquela tarde de domingo, depois de um banho
inesperado, com direito a barba e after-shave, disse-me, comovido, sorrindo, e
agradecendo, o que lhe dissera uma vez o seu pai: “estou como quem rega uma
alface”. naquela tarde, fora claro : o meu pai não queria que a sua aurora de
todas as manhãs associasse a casa de ambos ao seu fim. “se te custar que eu
morra na tua casa, tu passas a tua casa a patacos e procuras outra; afinal, estás
ali há pouco tempo; se for lá em nossa casa, a tua mãe vai associar a nossa
casa também ao meu fim e, certamente, vai custar-lhe ainda mais lá ficar; e eu
sinto-me em casa na tua casa. pode ser? desculpa lá, rapariga. e já me despedi
da nossa casa quando vim embora, já sabia que não voltava lá.” disse-lhe que
sim, sem hesitar. ainda não vendi a minha casa, talvez precisamente por isso -
as casas, não sendo hoje o lugar onde se nasce, podem ser o lugar onde se
morre, além de serem o lugar onde se canta, se ri, se chora, se trabalha, se
cozinha e se põe “ a mesa ao redor do coração”, onde se trabalha, se lê, se
desenha e se escreve. talvez tenham sido os livros da agustina a prepararem-me
(também) para isto.
no hospital de santo antónio nada lhe faltou, fora
uma coisa ou outra que me fez reclamar, muitas vezes até contra a sua vontade,
e muitas vezes em nome de outros doentes, que não tinham quem falasse por eles.
“enquanto tiveres papel e lápis, escreve, reclama, nunca se sabe o que pode uma
carta que sai das nossas mãos e chega a quem deve.” escrevi muito na altura,
escrevo ainda hoje.
para poder morrer em casa, com os seus, toda a
logística (cama, oxigénio, enfermeiro, morfina como tivera desde cedo e em dose
bastante para ir serenamente e sem dor) foi preparada com recurso aos cuidados
privados, pagos por nós e a comparticipar pelo sams. o sns não dispunha desta
solução e fiquei a pensar no que seria quando fosse a minha vez, perto ou longe
que viesse. e o que seria de todos aqueles que, estando hospitalizados longe de
casa, e sem este apoio de rectaguarda, se viram impedidos de irem morrer ao
lugar que escolheram.
reli ao meu pai algumas das coisas dos dias
anteriores, entre elas, daniel faria, que tantas vezes evoquei, antes e depois
: “cada um de nós é um lugar para os outros.” de repente, deixou de falar, mas
apertava a mão para sim, duas para não (dizer não implica sempre maior
convicção?, um gesto mais inequívoco?). a dada altura, chamei toda a gente, que
o gesto se ia, o respirar ganhava descompasso, e o meu pai deixou-se ir embora,
cansado de tanta luta, rodeado pelos seus.
hoje lia javier marías no comboio da manhã. o
livro leva quase 400 páginas e pouco se passou na intriga e, ao mesmo tempo, já
questionei quase toda a minha vida. não se passa quase nada no livro, e faz com
que se passe tudo nas nossas mãos. abre-se aquele livro, e abre-se um espelho
de aumento, fitamo-nos a nós (quem quer sossego não abre livros). fala sobre o
direito ao silêncio dos arguidos, sobre o efeito da versão contada por quem não
se remete ao silêncio e da irrelevância dessa versão; fala sobre a alegada
inevitabilidade da quebra de confiança e sobre a febre que assoma quando nos
desferem essa lança; fala sobre o que é o efeito semelhante ao da morte o
pedir-se, em tempo de guerra, que ninguém fale, pelo risco que pode importar a
“careless talk” para o sucesso do combate – e assim um governo impõe aos vivos
o que a morte impõe aos mortos, por condenar aqueles ao silêncio destes. fala
também do lugar onde se morre, e da voz que paira e fala desse lugar, como se o
conseguisse ver de fora, quando já não está nele.
morrer-nos gente é talvez muito isso : deixarmos
de ter quem conteste o que dizemos, em voz alta ou só dentro da cabeça, quando
acordados, ou do lado do dentro do sonho, quando dormidos (não tenho a certeza
que seja ainda dentro da cabeça). alguém ser nosso lugar é estar ali para nos
responder às melhores tiradas e aos maiores disparates – um lugar sempre nos
responde.
nos últimos anos, morreu-me muita gente, mais que
aquela que eu julgava ser capaz de suportar. este fim-de-semana, ao contrário
do que aconteceu nos anos anteriores, não fui à praia da apúlia no dia da morte
do meu pai - fui antes para vaiamonte.
sentei-me no jardim da casa, ajudei a plantar coisas para as ver crescer;
cozinhei coisas boas, bebi uns tintos, derreti-me dentro de uns doces
conventuais; e dormi, entreguei-me à sorna; procurei rir mais, melhor,
duradouramente – a evocação de quem não está mais no mesmo lugar não tem de ser
sempre pela ausência definitiva, antes pode ir-se buscar o tempo da presença
duradoura. na ida e na volta, e enquanto lá estive, pelo lado de dentro da
cabeça, desfiei páginas inteiras que trago escritas por dentro. àquela casa o
meu pai nunca foi – mas livros seus e meus, o sofá que veio da casa da apúlia,
a forma de fitar as árvores do jardim e o gesto de colher e comer as laranjas,
ainda quentes - são tudo da sua pertença, tudo marca sua. levámos os nossos,
afinal, aos lugares onde já não podem ir, quando vamos esses lugares e os
evocamos nestas formas de agir.
o meu pai ensinou-me várias coisas, a maior parte
delas sem o saber: a ir concentrada na estrada que parece não acabar nunca,
antecipando riscos quase imperscrutáveis, mesmo estando absorta; a conduzir
mecanicamente horas a fio, sem cansaço aparente, quase como se não estivesse
dentro do carro, mas alhures, dentro da cabeça ou do coração ou de um livro (o
que vai dar ao mesmo); a ser capaz de estar quieta a pasmar, olhando
detidamente para a paisagem, tomando consciência de fazer assim parte dela, e
deter-me em coisas que me assaltam horas depois de as ter visto e a evoca-las
inesperadamente; a manter a espinha direita como o fio de prumo que trouxe do
mercado de estremoz; a ter muitas pontas soltas numa história e a cerzi-las
como num livro policial, quando ninguém mais esperava que se descobrisse a
urdidura perfeita; a ser paciente nessa demanda, e tendo sempre mais coragem
que medo.