27 março 2016

gallo rojo

volto a esta música vezes sem conta, pela voz, pelos arranjos, mas muito mais pelo recado de luta que encerra.dois galos que se debatem num terreiro e o mais novo, vermelho, aguerrido ainda que de menor porte, não se nega ao combate com o que lhe faz sombra - um grande, mas o outro valente. na quinta-feira vou ver esta mulher encher o teatro circo em braga. tinha um alinhamento inteirinho para lhe propor, mas o que venha será mais ainda do que lhe peça. há mulheres que nos servem de exemplo - pela multiplicidade de registos, pela generosidade com que abraçam projectos, pelo empenho nas denúncias das questões sociais. sei quem me lembra, sei o que me inspira.
https://www.youtube.com/watch?v=U3ZCanVRFZQ

dieu est un fumeur de havanes

discutíamos tudo, voltados ao Tejo, até aquele grande plano que transformara, insistia, "um lameiro num jardim". os nossos almoços começavam ao meio-dia e acabavam ao lanche. trocávamos livros (trazia-lhe livros, veleidade minha), evocava memórias, listava conselhos.guardo todos, especialmente um em que me sublinhava, amiúde, que "não há decisão nenhuma que não se possa tomar numa noite atravessada em branco sentado ao relento numa varanda." na altura, ainda se podia fumar nos restaurantes e ainda não tinha chegado o primeiro dos três cafés com que fechávamos o almoço e já havia no ar o odor dos charutos cohiba. durante anos, mesmo até depois da sua ida, o seu nome ficou gravado na agenda do meu telefone com o nome "Jota Cohiba". e mesmo depois de se ter ido embora, olhava para o relógio às cinco da tarde, hora em que volta não volta chamava por mim e perguntava : "que andas tu a fazer, rapariga? ao menos, escreve, escreve." há dias, cruzei-me com um livro de Inês Pedrosa que lhe dera e que olhara com desconfiança, "fazes-me falta". nele evoca-se uma frase inscrita numa parede num café no centro de Paris, que advertia "dieu est un fumeur de havanes." acontece-me ir na rua e sentir o cheiro dos charutos cohiba ou das cigarrilhas mini-bronco. volto-me e não está lá ninguém; sorrio-me, ainda assim.

23 março 2016

in memoriam António Sepúlveda

António Sepúlveda traz-se sempre numa passada curta e leve, embora seja um homem ternuramente grande, redondo. O casaco antecipa a forma dos seus ombros descaídos e da barriga generosa, corpo de leitor demorado. A cor da roupa não sai do trio verde musgo-cinzento antracite-castanho chocolate e percebo anos mais tarde ser a cor da história e da reflexão : na roupa, a cor dos jardins, da arquitectura, das bibliotecas e dos arquivos, roupa parda para gente nada discreta pelo que diz e pelo que pensa. Atravessa os corredores sempre com uma beata discreta nos dedos e, na outra mão, como falso cábula sem pasta, traz um molho de folhas a4 dobradas sobre si mesmas, entaladas no manual do ano. Invariavelmente, traz também o jornal Público, a embrulhar livros e papéis - não raramente, põe em confronto um artigo do jornal com as coisas que o programa dizia que tinha de nos contar : aponta a causa remota na história de uma notícia, sublinha um artigo de um pensador mais atento, mostra a importância da história para se perceber o que vem na alegada actualidade dos jornais e a importância dos jornais na investigação, na discussão e no registo da história dos povos. Desfila, em dois anos, a história de um país, da pré-história ao fim das guerras liberais e à implantação da república - desfila, literalmente, numa letra miudinha, concisa, muitas notas num quadro verde, olhando os campos e as vacas que passam do lado de fora da janela, quando o nevoeiro levanta. Evidencia que tudo que temos e que somos, riqueza imensa e pobreza extrema, se explica com muito do que se passou em tempos que nem julgáramos importantes. No meio do que diz, faz trocadilhos com os nomes dos heróis e dos falhados, e lembra que a história é sempre escrita pelos vencedores e que nos compete a crítica atenta e vigilante do que nos dão a ler; cita de cor versos e linhas de romances, para provocar a nossa curiosidade, para estabelecermos laços clarificadores entre a história e o mais – ensina-me, na altura, tomei consciência depois, que a literatura e a filosofia são sempre são pares da história, uma vez espelho desta, noutras suas percursoras, noutras suas resultantes (nenhum romance dissecado na aula ao lado, com João Silva, deixa de ter enquadramento generoso seu, com ganho nosso). António Sepúlveda tem uns olhos pequeninos que, um dia, chegam cheios de sono, porque estivera a noite inteira a ver a guerra em directo na CNN. Em meia dúzia de minutos explica o conflito de todo o Médio Oriente, do petróleo, do contributo da Guerra Fria para o conflito e durante quase uma hora deixa, no turbilhão da aula, escapar aqui e ali, o que significa estarmos a ver a guerra ao tempo que ela acontece, serem os jornalistas a fonte da história, testemunhas directas dos factos e seus sobreviventes. Comenta sempre o que passa, porque quer alunos atentos ao que está para trás, mas com os olhos postos no que os cerca e que poderá exigir a sua intervenção, nem que seja com o seu voto. Ah!, a sua aula sobre o voto das mulheres, a luta pela igualdade, as condições de trabalho na tardia revolução industrial, a sua chegada ao ensino e à política, nada lhe pode escapar, que tem na sua frente uma turma quase só de mulheres e sabe o que pretende incutir-lhes para que não se fiquem por ser apenas mais meia dúzia de professoras nas humanidades. Os autores (“todos homens, senhoras, estranhai!”) que sublinha nessas aulas nos anos 90 são aqueles com que me cruzo sem medo ao longo da faculdade e depois quase vinte anos mais tarde – Orlando Ribeiro, Vitorino Magalhães Godinho, José Mattoso, Oliveira Marques, Adérito Sedas Nunes, António José Saraiva, José Augusto-França, Joel Serrão, António Sérgio, Jaime Cortesão. Mas, mais ainda que apontar quem importa ler, António Sepúlveda pergunta, pergunta incansavelmente, pergunta para nos fazer perguntar, para nos incutir a importância de pensar e de o fazermos de forma sistemática, contínua e incansável, pela nossa própria cabeça – perguntar-mo-nos sobre o tempo que foi, sobre o tempo que somos, para percebermos no que nos vamos tornar. E escrevermos sempre, de forma clara, mas convicta, como num ensaio, sobre isso (ainda hoje resulta). Disseram-me que se cansou e que se foi embora.Escreveu a sua história até ao fim, como homem de liberdade que sempre se mostrou. Outros continuam a sua luta - para isso ensinou, e pelo tanto que aprendi, lhe estou grata, lamentando não lho ter dito a tempo.