27 setembro 2013

passa-me o sal?, mesmo que me engane?

achava que o dia já tinha morrido de vez com a trovoada toda (eu sim) e eis que dou comigo a ler os jornais na dobra do turno, e eis que este senhor dos crocodilos, que terminava o seu romance que falava da madagáscar que se avistava do alto de uma árvore, com uma das frases que ainda hoje sei de cor,"esta carta tão amiga endereçada a ti", me chega assim, eu desamparada sem contar, eu a pensar em tudo o que ainda me espera antes de voar para roma (e lá ficar?), me atira com uma crónica destas, cortante como sempre, que sexta-feira não é mais dia para se baixar a guarda, pousar o pé no chão, não se dê por contente, que quando menos esperar há sempre um livro aberto para a desassossegar.

"Sinceramente nunca imaginou que pudesse acontecer-lhe, sinceramente já tinha desistido. Ao fazer cinquenta anos declarou para si mesma
- Acabaste
e deixou de esperar, com tão poucos homens por aí e tantas mulheres a mais, quase todas mais novas do que ela, quase todas mais bonitas, disponíveis, não casadas, não avós
(o bebé da filha nascera há seis meses)
prontas para uma aventura, um namoro, uma paixão
(mais que seis meses, quase sete)
qualquer coisa que lhes desse sentido aos dias, em lugar de, como ela, um marido hipocondríaco e azedo que engordara demais, perdera cabelo a mais, se contentava com o emprego mal pago, arrastando o tempo livre de médico em médico, ora por causa do fígado, ora por causa do pulmão, ora por causa do intestino, dado que tudo nele agonizava, e que às vezes surpreendia na sala, inclinado para a frente
- O esófago entupiu-se-me
exigindo ambulâncias, operações, análises, promessas a Nossa Senhora de Fátima, chás de limão, aspirinas, um enfermeiro que lhe desentupisse o esófago com um arame habilidoso. Portanto aos cinquenta anos declarou para si mesma
- Acabaste
deixou de se arranjar com o cuidado de dantes, perdeu formas, almoçava sozinha, com uma revista, antes de voltar para a agência de viagens, de olhos na mesa, sem reparar em ninguém. Almoçava sozinha num restaurante pequenino, de operários, não reparando nos outros que, estava segura disso, não reparavam nela, indiferente à televisão lá no alto, junto ao tecto, onde a vida continuava, sem lhe ligar nenhuma, sob a forma de uma novela cheia de dramas e paixões de modo que, sinceramente, nunca imaginou que pudesse acontecer-lhe, nunca imaginou que, na mesa ao lado, uma voz
- Dá-me licença?
a pedir autorização para usar o galheteiro e, a embrulhar a voz, um sorriso tímido com um sujeito à volta, mais ou menos da idade dela, sem aliança
(porque carga de água fui logo olhar a mão esquerda?)
o que não quer dizer nada, mal saem de casa os espertalhões metem-na na argola das chaves, com quem, a pouco e pouco, foi começando a conversar, nada de importante, claro, disto e daquilo, nos intervalos da revista, até se esquecer da revista, emprego, o tempo, as mentiras dos políticos, ninharias assim, resvalando, sem se aperceber, para questões mais, como explicar, mais nossas, trabalho, família, ela casada, ele solteiro, ou antes solteiro desde há três anos, a senhora com que vivia trocou-o por um militar da Manutenção, comentários acerca do fascínio das fardas, irresistível para certas, como exprimir-me, certas, percebe o que me vai na cabeça, não é verdade, e ela percebia, ambos com a palavra galdéria debaixo da língua, um fulano educado, o do galheteiro, pelo modo de pegar no azeite entendia-se logo, filho único, a mãe viúva em Bragança, o pai propriedades por lá mas, infelizmente, o álcool, terras vendidas, internamentos, uma agonia penosa, a interrupção dos estudos mesmo no fim do liceu
(desejava ser médico, foi por uma unha negra, bastava que o pai algum juízo)
a vinda para Lisboa, sozinho, a mãe não se concebia fora de Bragança, não sei se conhece, que no inverno é um gelo do caraças, perdoe a expressão, a vinda para Lisboa, sozinho, a dificuldade de conciliar trabalho e estudo
(mal disse conciliar a ela apareceram-lhe logo cardeais a elegerem o papa, por que motivo, até agora, não elegeram um preto?)
de maneira que foi fazendo o seu percurso
(o meu marido não fala assim tão bem)
nas Finanças, subindo uns degrauzinhos, e depois a tal
(não sei como chamar-lhe)
a tal companheira, pronto, a quem os guerreiros encantavam, a separação, sempre desagradável embora sem cenas, malas pela escada abaixo, juntamente com o cão que lhe ofereceu, à despedida, um chichi extra no patamar que o sujeito lavou com a esfregona e, desde então, sem companhia mas em paz, felizmente a saúde
(não é hipocondríaco, não é hipocondríaco)
não lhe tem faltado, o doutor, com inveja
- As suas análises estão tão boas que me irritam
ao mesmo tempo que palpava não sei quê no pescoço, e o sujeito
- E depois sucedem sempre acontecimentos inesperados
a devolver o galheteiro
- Por exemplo encontrá-la
com ela a pensar
- Há quanto tempo eu não corava?
simultaneamente envergonhada e feliz por corar
- Oxalá não repare
mas reparou, o maroto
- Não se ofende se lhe confessar que parece uma menina?
e ela coradíssima, que horror, a desculpar-se
- De há tempos para cá volta e meia uns calores
a mostrar-lhe, para disfarçar, a fotografia do neto que o sujeito achou, na expressão dele, um apetite, a exigir satisfazer a conta, verbos mais bonitos do que os do marido
- É um favor que me faz
ao lado do restaurante uma pensão, Hospedaria Estrela Do Pastor, 2.º andar, ou seja uma escada estreita, sem elevador, com lâmpadas hesitantes nos patamares, o dono da hospedaria, de chinelos
- Pagamentozinho adiantado por causa das coisas
o dono nódoas na camisa, o dono
- O quarto de banho ao fim do corredor sem papel higiénico, bocados de jornal enfiados num prego, e sinceramente nunca imaginou que pudesse acontecer-lhe, sinceramente já tinha desistido, um primeiro beijo aflito, um segundo assim assim, um terceiro como deve de ser, vá lá, os lençóis não muito limpos mas pronto, um gancho de cabelo na almofada, uma certa repugnância por tanta sujidade que se foi dissolvendo, doeu-lhe um bocadinho, não lhe doeu nada, daqui a vinte minutos tenho de estar no emprego e dali a vinte minutos estava no emprego, o sujeito para ela, à despedida
- Amanhã vou a Beja em serviço mas para a semana, sem falta, estou cá
ao chegar a casa, ao fim do dia, o marido
- Não sei o que se passa com o meu estômago
a apertar-se numa botija e ela, sem o ouvir, decidindo ir ao cabeleireiro, decidindo emagrecer, a cantarolar na cozinha, ou antes dando fé, de repente, que cantarolava na cozinha.


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