30 novembro 2004

deixar ficar recado

foi com dor e trabalho que aprendi a falar ao telefone,para disfarçar olheiras, telhas e uma idade menor à que a voz transaparece. aprendi a franzir o sobrolho e a rir-me também enquanto falo e enquanto me calo.e depois não resisto a ter uma caneta na mão e a escrever sobre o que me dizem ao que pergunto. ou a escrever outra coisa que me distraia do que me dizem e de que não gosto.ou a desenhar, como se os meus desenhos fosssem alguma vez mais alguma coisa do que frases que desenhei com minha melhor caligrafia e ainda assim sairam, como sempre,um grande,grande emaranhado.desemaranhar é libertar do mar?

depois,houve uma altura que ouvir alguém ao telefone era como se tivesse alguém a fazer rádio só para mim.essa altura vai longe.

hoje espero que me respondam aos recados que deixo, que me digam que a caixa das mensagens transbordou, com tanta pressa em dizer "chega de saudade".há dias, a medo mas a rir, confessaram-me que transcreviam os recados que eu deixava, como se assim, quando a gravação desaparece,o recado breve passasse a ser quase uma carta que se saboreia mais longamente.

na madrugada - a lua cheia, a insónia toda e o laranjal sem cheiro porque é inverno - dou comigo a ouvir continuamente um doce lamúrio de quem diz que nunca mais é dia de ir comer peixe outra vez à margem sul, que nunca mais está sol que chegue no porto que conceda viagens debaixo do inverno, que me deixa ficar um abraço, um abraço, um abraço, um abraço, que me rodeia e me segura à medida que se repete. pudesse eu, ficava a vida toda a ouvir um recado assim.se mo deixasse.

"encontros e despedidas", maria rita que perdi no coliseu.


24 novembro 2004

mãos a arder

fui ao cinema ver que filmes estavam em cartaz,já passava a hora da última sessão.trazia atravessado na garganta o adiamento da peça de teatro que não fora ver a lisboa naquele fim-de-semana.tinha a suspeita que traria dentro as respostas às perguntas que me recusava fazer.foi então que vi a peça anunciada num cartaz de tamanho A3, afixado num contentor de obras perto do mercado do bom sucesso.

no dia seguinte, acordei mais cedo que o costume, telefonei a demandar por bilhetes e pelo caminho para lá chegar. trabalhei a correr, fiz fintas no trânsito, verónicas, diria o outro senhor de olhos azuis, e cheguei a tempo, também mais cedo que o costume.

a sala estava cheia como um ovo e contei ainda algumas pessoas sentadas no chão. a voz, umas vezes quase gritada, outras a parecer soar-me sussurada no ouvido, pousada no meu ombro direito, dizia cada linha do texto como se trouxesse consigo o que estava antes e depois de si, como se cada linha fosse o traço de síntese entre dois planos.

a plateia esperou uns segundos antes de rebentar num aplauso, espera necessária para recuperar o fôlego? aplaudia de pé e os actores, com narizes vermelhos de palhaço, dançavam ao som da marcha.só quando a música se calou se sentiu a dimensão da ovação, que ribombava contra as paredes.sorri-me, o recado sempre vinha ali dentro.

às cinco da manhã, ainda tinha as mãos a arder.

“palhaço de mim mesmo”, com ruy de carvalho, fórum cultural de ermesinde.


15 novembro 2004

a olhar por mim

chegou finalmente o frio que greta as mãos,que insisto em trazer sem luvas.hoje atravessei o jardim da cordoaria e desci até à papelaria heróica, na rua das flores.semanas antes, vira na montra uns cadernos pretos,estreitos,capas pretas,folhas brancas para quem não sabe escrever ao longo de linhas.vendem-se à dúzia,vêm atados por uma fita de papel.
doze cadernos, como doze ovos,como doze meses,como doze cravos.estarei feliz quando os cadernos lisos estiverem cheios como ovos,à razão de um por mês,a celebrar a liberdade de cada um escrever o que lhe apetece.e guarda para si.ou não.

"someone to watch over me", ainda brad mehldau.

04 novembro 2004

felicidade

chovia que se fartava.éramos três sentados à mesa,num restaurante que antes era uma casa de fotografia,a música saía de dentro de um armário com rede de de capoeiro.a garrafa de vinho estava quase vazia,mas não foi dela que saiu a história contada à laia de piada.falava de um homem que comprava sempre os sapatos um número abaixo do tamanho do seu pé - assim, chegado a casa,ao fim do dia,ao sentar-se na berma do sofá e ao libertar-se do aperto,tinha garantido um momento de felicidade.ri-me despudoradamente.lembrei-me de ter andado,manhã nascida,de vestido comprido com sapatos finos pela mão,a tentar equilibrar-me no lancil sempre estreito do passeio.e lembrei-me de um arquitecto tonto,menino sempre ensonado,que conduzia um mercedes imenso,com quem anos antes,falara horas perdidas à luz dos trocos:confessava então que se descalçava para poder desenhar.adivinhei-o empoleirado na cadeira,os pés nús bem longe de chegarem ao chão,a balouçarem no vazio,como se a cadeira fosse assim um parapeito de uma janela virada ao rio em lisboa,a dobra de um muro alto em mértola,com figueiras retorcidas em baixo ou o limite da última tábua que range no porto palafita da carrasqueira,o sado azul logo ali.



02 novembro 2004

vestir a pele

atéia,dou comigo em serralves aos domingos,quando não me perdi na noite do labiryntho.à saída, com um soco no estomâgo dado pelos desenhos e pelos recados de paula rego, pensava se as pessoas que se alinhavam, perfiladas, até à porta de ferro forjado da fundação, iriam sair dali tão risonhas como queriam entrar.

lembrava-me das caras vazias,olhos encovados,mãos retorcidas, de quase todas as mulheres,mesmo até da que,triunfante,vestia a pele do lobo derrotado e esfolado,sentada numa poltrona vermelha.

anos antes -depois de um desgosto de amor, primeiro e último, daí em diante,ia-me sempre embora primeiro -, encontrara numa exposição do CAM da gulbenkian alguns desenhos e pinturas que revi agora.esta mulher pinta e desassossega como ninguém.já então advertia que há mágoas e dores maiores que aquelas,ridículas,que trazemos connosco.e que há quem traga consigo mágoas e dores como as nossas e assim, perante aqueles espelhos,a nossa memória vem à tona da pele e arde, arde, arde...

quando saí,lembrei-me nas fotografias de nan goldin,vistas também ali.trouxe ambas pela mão.

"paranoid android" tocado por brad mehldau.