29 maio 2018

alma grande


atravessei, quase em branco, a madrugada da passada sexta-feira, tal como acontecera em 2011, no dia da morte do meu Pai. nesse dia, fui buscá-lo ao hospital de santo antónio, como combinado: aguardara toda a noite pela nossa chegada, para que conseguíssemos levá-lo a morrer em casa. que casa? a minha.
no domingo anterior, perguntou-me “quanto tempo tenho?”, e respondi-lhe com outra pergunta “queres mesmo saber?”. firme, disse que sim, e acrescentou “eu tenho coisas para tratar e tu também”. quase em lágrimas, admiti-lhe “pode precipitar-se a qualquer momento”. respirou a custo, sorriu-se, e disse “sendo assim, começa a escrever e faz uma lista do que tens para aviar. e vai-me cortar esse cabelo. e põe um fato e uns saltos no meu funeral. e se mais ninguém disser mais nada, não me deixes ir sem dizeres algumas palavras sobre o teu velho.” cortei o cabelo rente no dia seguinte, ida e volta quase menos de uma hora; terei o fato do armário, que já nem para os julgamentos o punha; e deixei-o a arejar, pendurado no lado de fora do roupeiro; e sim, foi a última vez que o vesti, e a última vez que pus uns saltos altos. lembrava-me de ser ganapa e de ver o meu Pai no funeral do seu, a única vez que o vira, desde que eu nascera e tinha memória, de fato e de gravata. e a chorar. fiz-lhe o elogio fúnebre e pedi um aplauso para a sua vida.
naquela tarde de domingo, depois de um banho inesperado, com direito a barba e after-shave, disse-me, comovido, sorrindo, e agradecendo, o que lhe dissera uma vez o seu Pai: “estou como quem rega uma alface”. naquela tarde, fora claro : o meu Pai não queria que a sua Aurora de todas as manhãs associasse a casa de ambos ao seu fim. “se te custar que eu morra na tua casa, tu passas a tua casa a patacos e procuras outra; afinal, estás ali há pouco tempo; se for lá em nossa casa, a tua Mãe vai associar a nossa casa também ao meu fim e, certamente, vai custar-lhe ainda mais lá ficar; e eu sinto-me em casa na tua casa. pode ser? desculpa lá, rapariga. e já me despedi da nossa casa quando vim embora, já sabia que não voltava lá.” disse-lhe que sim, sem hesitar. ainda não vendi a minha casa, talvez precisamente por isso - as casas, não sendo hoje o lugar onde se nasce, podem ser o lugar onde se morre, além de serem o lugar onde se canta, se ri, se chora, se trabalha, se cozinha e se põe “ a mesa ao redor do coração”, onde se trabalha, se lê, se desenha e se escreve. talvez tenham sido os livros da agustina a prepararem-me (também) para isto.
no hospital de santo antónio nada lhe faltou, fora uma coisa ou outra que me fez reclamar, muitas vezes até contra a sua vontade, e muitas vezes em nome de outros doentes, que não tinham quem falasse por eles. “enquanto tiveres papel e lápis, escreve, reclama, nunca se sabe o que pode uma carta que sai das das nossas mãos e chega a quem deve.” escrevi muito na altura, escrevo ainda hoje.
para poder morrer em casa, com os seus, toda a logística - cama, oxigénio, enfermeiro, morfina como tivera desde cedo e em dose bastante para ir serenamente e sem dor- foi preparada com recurso aos cuidados privados, pagos por nós e a comparticipar pelo sams. o sns não dispunha desta solução e fiquei a pensar no que seria quando fosse a minha vez, perto ou longe que viesse. e o que seria de todos aqueles que, estando hospitalizados longe de casa, e sem este apoio de rectaguarda, se viram impedidos de irem morrer ao lugar que escolheram.
reli ao meu Pai algumas das coisas dos dias anteriores, entre elas, Daniel Faria, que tantas vezes evoquei, antes e depois : “cada um de nós é um lugar para os outros.” de repente, deixou de falar, mas apertava a mão para sim, duas para não (dizer não implica sempre maior convicção?, um gesto mais inequívoco?). a dada altura, chamei toda a gente, que o gesto se ia, o respirar ganhava descompasso, e o meu pai deixou-se ir embora, cansado de tanta luta, rodeado pelos seus.
hoje lia javier marías no comboio da manhã. o livro leva quase 400 páginas, e pouco se passou na intriga e, ao mesmo tempo, já questionei quase toda a minha vida. não se passa quase nada no livro, e faz com que se passe tudo nas nossas mãos. abre-se aquele livro, e abre-se um espelho de aumento, fitamo-nos a nós (quem quer sossego não abre livros). fala sobre o direito ao silêncio dos arguidos, sobre o efeito da versão contada por quem não se remete ao silêncio e da irrelevância dessa versão; fala sobre a alegada inevitabilidade da quebra de confiança e sobre a febre que assoma quando nos desferem essa lança; fala sobre o que é o efeito semelhante ao da morte o pedir-se, em tempo de guerra, que ninguém fale, pelo risco que pode importar a “careless talk” para o sucesso do combate – e assim um governo impõe aos vivos o que a morte impõe aos mortos, por condenar aqueles ao silêncio destes. fala também do lugar onde se morre, e da voz que paira e fala desse lugar, como se o conseguisse ver de fora, quando já não está nele.
morrer-nos gente é talvez muito isso : deixarmos de ter quem conteste o que dizemos, em voz alta ou só dentro da cabeça, quando acordados, ou do lado do dentro do sonho, quando dormidos (não tenho a certeza que seja ainda dentro da cabeça). alguém ser nosso lugar é estar ali para nos responder às melhores tiradas e aos maiores disparates – um lugar sempre nos responde.
nos últimos anos, morreu-me muita gente, mais que aquela que eu julgava ser capaz de suportar. este fim-de-semana, ao contrário do que aconteceu nos anos anteriores, não fui à praia da apúlia no dia da morte do meu pai - fui antes para vaiamonte. sentei-me no jardim da casa, ajudei a plantar coisas para as ver crescer; cozinhei coisas boas, bebi uns tintos, derreti-me dentro de uns doces conventuais; e dormi, entreguei-me à sorna; procurei rir mais, melhor, duradouramente – a evocação de quem não está mais no mesmo lugar não tem de ser sempre pela ausência definitiva, antes pode ir-se buscar o tempo da presença duradoura. na ida e na volta, e enquanto lá estive, pelo lado de dentro da cabeça, desfiei páginas inteiras que trago escritas por dentro. àquela casa o meu pai nunca foi – mas livros seus e meus, o sofá que veio da casa da apúlia, a forma de fitar as árvores do jardim e o gesto de colher e comer as laranjas, ainda quentes - são tudo da sua pertença, tudo marca sua. levamos os nossos, afinal, aos lugares onde já não podem ir, quando vamos esses lugares e os evocamos nestas formas de agir.
o meu pai ensinou-me várias coisas, a maior parte delas sem o saber: a ir concentrada na estrada que parece não acabar nunca, antecipando riscos quase imperscrutáveis, mesmo estando absorta; a conduzir mecanicamente horas a fio, sem cansaço aparente, quase como se não estivesse dentro do carro, mas alhures, dentro da cabeça ou do coração ou de um livro (o que vai dar ao mesmo); a ser capaz de estar quieta a pasmar, olhando detidamente para a paisagem, tomando consciência de fazer assim parte dela, e deter-me em coisas que me assaltam horas depois de as ter visto e a evoca-las inesperadamente; a manter a espinha direita como o fio de prumo que trouxe do mercado de estremoz; a ter muitas pontas soltas numa história e a cerzi-las como num livro policial, quando ninguém mais esperava que se descobrisse a urdidura perfeita; a ser paciente nessa demanda, e tendo sempre mais coragem que medo.
naquela madrugada, como nos filmes que o meu pai sempre me deixou ver antes da idade aconselhada, deslindáramos uma charada, e a viagem do fim-de-semana fora precisamente a recompensa pela revelação alcançada – não estará tudo perdido quando uma praça de gente madura se põe a pensar. na mala que trago a tiracolo, passei a trazer uma régua metálica, muito bonita, de cálculo de munições necessárias para um tiro certeiro. será um objecto talvez demasiado raro para o trazer sempre comigo, mas servirá para pensar detidamente antes de qualquer gesto de arremesso e, depois, confiante, disparar sem hesitação.
https://www.youtube.com/watch?v=dxf7dIUiP4w
Fernando Lopes-Graça e Lisboa cantat cantam "Acordai".
"Alma-Grande", de Miguel Torga, em dia de discussão e votação parlamentar da despenalização da eutanásia.