16 fevereiro 2006

e as dores do corpo?

“as dores da alma só a morte as leva do corpo.” não sei quem me disse isto. mas estava escrito num papel amarelo,apertado entre duas páginas de um livro deixado, na noite anterior, em cima da mesa, para que, ao tropeçar nele, me lembrasse do poema que sublinhara para te ler, de mansinho, na dobra do sofá ou sentada no parapeito alto da janela da varanda. acabei por me esquecer, por o tempo ter sido ocupado, em cheio e em grande, pelas caixinhas de música que, com cuidado e boa premeditação pousaste no meu colo e que ainda não consegui deixar de ouvir, mesmo quando já durmo, vencida a insónia que anda a levar a melhor.

ainda não são sequer dez da manhã e já estou aqui a escrever : é muito cedo, está muita luz, nem sequer há gente cá dentro ou lá fora. mas adivinho ainda não seja de manhã - nem para os meus dedos, nem para os meus olhos, nem para o meu corpo.talvez seja por ainda trazer comigo a madrugada atravessada quase em branco, com um verso da música do filme das sete da tarde de ontem,que fui ver julgando entreter a espera, afastar a solidão e estancar o choro.
nem sempre os filmes que arriscamos a desoras cumprem o propósito que nos levou para dentro deles e para fora de nós.este não cumpriu nenhum e ainda bem. falava de um história de amor que não se cumpriu por falta de coragem de um dos amantes e quando a coragem deste chega, o outro já está morto.o verso da música, que se sobrepunha às letras que subiam no final, falava de alguém que se parava pouco em lado nenhum e que não deixava sementes em nenhum lugar. é por ter sabido ontem que pode vir a ser esse o meu destino, que trago comigo a cara de tristeza do homem que ficou só porque chegou tarde à sua vida e faz uma jura de regresso a uma fotografia do sítio onde foi feliz.


“brokeback mountain”, de ang lee.
“eternidade e um dia”, BSO,eleni karaindrou.

09 fevereiro 2006

"minha laranja amarga e doce"

irrompeste, com serenidade, pelos meus dias adentro sem que o tivesse sonhado sequer.às vezes, nem isso nos concedemos, por acharmos que nem nos sonhos merecemos ficar com quem queremos.

depois, a conversa, o olhar,a promessa, o convite e o beijo desabaram mais depressa que a passagem das horas na viagem do caminho de casa. e foi assim que, graças a ti, os limões da calábria, baços e rugosos, pousados na taça imóvel em cima da mesa virada ao mar, vão dando lugar às laranjas acabadas de colher, roliças,de pele lisa e corada dos sorrisos.

sugeriram-me uma vez que a procura da nossa alma gémea é a procura da outra metade da nossa laranja.temo,por um acaso muito,muito feliz,ter encontrado a minha secreta metade.




"cavalo à solta",ary dos santos cantado por fernando tordo.

05 fevereiro 2006

morrer-nos gente

a viagem de sábado ainda a trago comigo : o sol de frente no asfalto, as matas ardidas do verão, o cheiro das duas cigarrilhas fumadas seguidas no adro da igreja (a entreter a espera, enquanto o padre ausente de si debitava um discurso automático sobre dor e vida eterna), o som compassado e quase militar dos passos no caminho empedrado de calcário, da igreja ao cemitério, a terra a cobrir o caixão e este a tocar a oco, como se o morto não estivesse lá.

fui enterrar o pai de um amigo. não tenho frequentado funerais pelos mortos, mas pelos vivos. sou uma mulher cheia de sorte – não me tem morrido ninguém de monta. pelo que também nunca sei muito bem o que dizer nestas alturas : limito-te a estar lá, dar um abraço, afagar o cabelo, tentar suster do lado de cá quem parece, às vezes, querer ir também com quem se foi embora. quisera entregar o livro que me fez deixar de temer a morte de quem mais se gosta, mas esquecera-o quilómetros atrás.

lembrei-me entretanto, de um filme que vi, a desoras, há semanas : falava de um homem que sabia estar a morrer e que, aos poucos, se ia despedindo dos que, serenamente, deixaria para trás, deixando como recado maior que assim que se aprenda a morrer, logo também saberá como viver. depois, para saber o que diriam os seus no seu funeral, antecipou-o, fazendo-o em vida – ouvindo as músicas, as homenagens e confissões, feitas em tempo, de quem o queria bem.

naquele funeral, a família não falara nem fora chamada para isso. talvez a dor fosse demais e o padre incapaz. mas dizer-se aos outros como era quem se foi embora (sempre, sempre antes do tempo) e assumir-se ou extravazar-se a dor (que parece que agiganta cada vez mais e que impede a respiração), podia ter deixado os sobrevivos mais perto uns dos outros e, ao mesmo tempo, menos irremediavelmente distantes de quem partia.

o silêncio dos funerais contribui para pensar que a morte chega mais depressa quando nada se ouve, quando ninguém responde no eco, quando não há nem vozes, nem música, nem calor, nem livros nem nada.

deve ser por isso que trago a casa cheia de livros, que deixei brad meldhau a tocar ineterruptamente, (como se antecipasse os encores do concerto de sexta que vem); foi por isso que esqueci, de propósito, abertas às escancaras, as janelas viradas ao exíguo pomar de laranjeiras – quando lá chegar, já noite fria, saberei que o sol da tarde andou por ali. é por isso que dou comigo muitas vezes a falar sozinha, contra os objectos que não sei onde perdi e contras coisas em que tropeço; é mesmo por isso que dou comigo a recitar poesia avulsa escolhida ao acaso, em voz alta, a meio da madrugada; e é por isso ainda que a primeira coisa que faço quando me levanto, é pôr a rádio a debitar as novidades sobre o mundo que já acordou há horas atrás, do lado de fora de mim. como se ouvir o que me dizem, aos berros, vertiginosamente, ou ao ouvido, quase sibilante, bem devagar, fosse prova bastante que ainda respiro, mais este dia, restando prometer-me vivê-lo de forma a dizer, no seu fim,“morria com o dia de hoje no olhar”.



“fazes-me falta”, inês pedrosa.
“tuesday’s with morrie”, de mitch albom.

02 fevereiro 2006

"amar es el empieze de la palabra amargura"?

e eu que trago a amargura no fim do meu nome, eu que li no outro dia, no restaurante do almoço, escrito numa parede que "o sabor amargo fortalece o coração", eu que trago no peito o aperto da tua distância de mim e da minha ausência daqui, eu que falo e escrevo muitas vezes com um azedume suspeito, crónico e reiterado, eu que digo que se se começar pelo que amarga,tudo o mais será doce, eu digo também tanto fel foi sinceramente interrompido pelo teu sorriso de agrado pelo meu último recado – digo que me enterneceu saber que as minhas promessas, pedidos e confissões te comoveram e te demoveram da desistência.e,assim,dei comigo,sempre amarga,por dentro, por fora, a pensar que não é vão tanto tempo de espera mesmo sabendo que espero por quem nunca há-de vir ou se vier, não ficará o tempo todo que arrogamentemente, julgo merecer). estes segundos da tua doçura afastaram a taça de limões pousada na mesa quadrada, coberta por uma toalha branca, em frente ao mar da itália,na abertura do filme "cinema paraíso", que persiste em ser a síntese do que em sido o amor na minha vida.


"un bel dia vedremo", cantado por maria callas.