07 fevereiro 2007

fazes-me falta, jardineiro

"Hoje à tarde, um senhor falava de um jardineiro que aos oitenta anos lhe disse "aos cinquenta, andava eu a dar pontapés à lua”. No ar sente-se o odor dos charutos que nunca perde da mão. Os seus olhos azuis estão escondidos por detrás de uns óculos pesados, que descem à medida que a conversa vai avançando. Sem que ninguém se aperceba, continua a chutar para longe constelações inteiras. Raramente lhe oiço a voz, a não ser quando chama pela secretária ou pelo menino de quem é mentor. Este senhor caminha vagaroso, com a calma de quem já viu muito e que quase tudo sabe. E quando fala ,as suas deixas lembram cerejas vermelhas, quase negras, maduras, desprendidas com um golpe leve de uma árvore prenhe e generosa. Este senhor é você."

sabe que, se me deixasse,não largava a cabeceira da sua cama um segundo que fosse.lia-lhe os álbuns todos do calvin, a duas vozes fingidas.e depois as gordas e as magras dos jornais (que sempre o via aviar com ar de interesse, mas sempre crítico, rindo-se muito das verdadeiras histórias por detrás de cada notícia).

levava-lhe também uma caixa de som onde pudesse ouvir a sua música, que mania essa dos hospitais de terem televisões nos quartos, quando é de música que você gosta (apesar de ser homem maior da televisão neste país).

retenho sempre esta imagem, de nunca ter começado as suas frases,incluindo as mais divertidas, assim, por este país. dizia mesmo, este país também sou eu e o que dele eu fizer. ria-se do meu carácter voluntarioso, mas até você continuava a lutar por um futuro melhor para este país, mesmo que às mesas de almoços infindáveis para os quais lhe ia rareando a paciência, mesmo que em reuniões mais ou menos secretas, mesmo que em congressos mais ou menos entediantes.

dizia-lhe, ainda me ouve?, levava-lhe a música nova que venho ouvindo e outra velha que só conheço agora, mas a tempo,creio eu. já reparou?,não foram assim tão poucas as doces descobertas que lhe confiei.

relembro-me muitas vezes da sua voz,comovida, embargada, quando foi do CD da ronda dos quatro caminhos:raios te partam, rapariga, que diabo de música me foste tu mandar!.ripostei,a medo, não gostou?.sossegou-me: tinhas razão,lá no início,quando citavas einstein,“é mais fácil desintegrar um átomo que um preconceito.” e desintegraste este: nunca pensei que pudesse ser tão bonito o que achava impossível.obrigada por teres insistido para que ouvisse, uma vez que fosse.sabes? há três dias que não oiço eu outra coisa.

conclui, há muito, que você é o pensador mais livre que conheço,o mais rigoroso e entusiasmado leitor,o mais justo crítico; e também o melhor conversador e melhor gestor dos silêncios,nessas conversas e no espaço entre elas.

e o amigo maior,que nestes anos todos,desde novembro de 2002, nunca deixou me telefonar,quase todos os dias, ou aos berros, a perguntar-me, quase madrugada como ainda dormes!,com tanto trabalho para fazer? ou em surdina, com meiguice, então,como está a ser o teu dia?já leste o jornal?chove no porto?sabes o que almocei?.

sabe?,nunca mais é o dia dos seus anos, para lhe levar o costumeiro livro que desencanto para o encantar das prateleiras da bonita Lello ou da democrática FNAC, para lhe levar mais uma caixa de música diferente do seu Bach, para o ver ler,cotovelos pousados nos antebraços da cadeira do restaurante virado ao tejo,mais um dos meus recados, como você lhe chama e eu reconheço.para depois o ver, comovido, a procurar a minha mão direita e dizer-me, muito obrigada,a sorrir, o seu olhar azul,azul,tão marejado que se nota daqui,deixe-se disso,não seja tonto. nunca mais é dia dos seus anos.

é já na próxima segunda-feira, mas importa-se que vá de véspera?,que de véspera?, quero sair daqui a nada, apanho o carro,está aqui à porta,quero lá saber que esteja a chover,até chego mais depressa, em menos de três caixas de música estou aí.

ainda discutimos o referendo, a chuva, a primavera, este cigano que está a tocar aqui há dias, a alternar com o pianista andaluz, levo ambos para banda sonora da nossa conversa. levo duas tangerinas, o jornal de hoje, o meu livro favorito do daniel faria. ou então não faremos nem diremos nada.eu seguro a sua mão, faço-lhe uma festa no seu cabelo arrepiado de rufia,componho-lhe a dobra do lençol, aconchego-lhe o cobertor e ficamos assim, em sossego, sem necessidade de enxotar o silêncio. temos a vida toda para conversar.até já,que eu estou de saída,não saia você daí.

01 fevereiro 2007

anda daí, vamos ao chiado

quando ouvimos a música colada aos ouvidos (como quando estamos, tontas, na fnac, como se não houvesse gente à volta, como se a gente em volta não nos ouvisse desafinar ou visse dançar a descompasso), a música soa-nos muito mais dentro da cabeça, ouvimos notas que doutra forma não estariam ali, e, ao mesmo tempo, embora não ouçamos nada mais que a música, parece que damos mais atenção ao que estamos a fazer (ou a não fazer). é como se calásssemos as vozes dentro da cabeça, que nos distraem do que escrevemos no piano desafinado que nos suporta as fúrias e as doçuras dos recados.

oiço andrés márquez, que fora uma ou outra música que podia ser de elevador ou de série menor da televisão, tem conseguido manter-me presa há vários dias. no outro dia dei por mim a escrevinhar no cantinho tímido dos rascunhos impressos das peças que escrevo, a play list que andei a ouvir enquanto escrevia. como se pudesse explicar alguma coisa, como se a inspiração ou o erro maior pudesse vir dali, do que se ouve enquanto se pensa e se escreve. (como se não fosse no silêncio do sono, do dealbar da manhã ou da escuridão da noite que tudo se torna claro, transparente.como se não fosse na ausência de tudo que se dão todos os laços clarificadores).

obrigada,menina dos cabelos azeviche,por todas as caixinhas que pousaste no meu colo,ainda é aí que as trago.