29 abril 2005

deve ser por isso

às vezes, sou acometida da urgência de pestanejar demoradamente,a meio de uma viagem debaixo do sol,de uma braçada mais embrulhada na piscina,de um telefonema com perguntas difíceis.suspeito que seja para te encontrar do lado de dentro de mim,já que tardas tanto em assomar à ombreira da minha porta, em sorrires durante o teu soninho na dobra do meu lençol,em me surpreenderes na curva roliça do meu ombro.

12 abril 2005

i've got to see you again

tenho de ver-te outra vez além desta, e mais outra, e outra ainda, digo-to à descarada, quero lá saber que estejam a ouvir, seguro a tua cara entre as minhas mãos desastradas,de dedos tortos,cravo os meus olhos em frente aos teus,despenteio-te nesse movimento,deixo-te à toa, perdido, mas sem te deixar fugir de entre as minhas mãos, agarro-te a cabeça pela nuca, como se a abanasse num golpe doce e firme, ao mesmo tempo, como se este abraço nunca mais se desfizesse,entre o dia de hoje e o reencontro que vem sempre ainda tão longe. quero lá saber da vista e da comida e do vinho e do cheiro da primavera. tenho saudades é do cheiro da tua pele na minha almofada, do teu perfume persistente na gola do meu casaco na manhã seguinte,tu já dentro do comboio,só o teu cheiro a fazer-me companhia e o jornal esquecido no banco detrás,desfolhado sem interesse,as páginas ainda certinhas.

falar ao ouvido

é curioso como,ao telefone,deixamos estranhos falarem-nos ao ouvido e depois, os que nos são próximos,às vezes,nos parecem falar de tão longe.hoje um estranho, a quem chamara para resolver coisa séria, acabara a confessar que gostava de almoçar sentado no relvado da Biblioteca Nacional,como se assim e por isso fosse um homem do campo.e falámos da BN, porque não me apercebera eu, tantas vezes deliberadamente perdida em Lisboa, depois de um almoço de sexta-feira,que a Cinco de Outubro acompanhava longamente a República e alcançava o Campo Grande pelas costas de mais um edificío da CM,cheio de papel.a minha desorientação fez-me gargalhar ao telefone.
no fim da conversa, já à varanda,lembrei-me do que me escrevera aquela mulher do sul,"um sintoma de liberdade é o som de uma gargalhada". pensei em todas as vezes que me ri para me libertar do medo das alturas,da tristeza do fim,da raiva da injustiça e do desconsolo da perda - em todas essas vezes, a gargalhada foi o caminho da liberdade e não apenas sinónimo dela.

06 abril 2005

"um dia..."

sabe? um dia perco a paciência, pego nos livros,nas roupas, nas chaves e vou entregar tudo ao presidente da república. e digo-lhe :"olhe, tome conta disto, que a culpa do estado em que isto está também é sua".e vou apanhar ar puro para outro lado.

ouvi isto ao fim do dia, de um senhor que dizia que não cumpria as suas obrigações porque outros também não cumpriam as deles. percebi que estava tudo seguro por arames na sua vida.mas não era de de marionetas que falávamos.

depois de pousar o telefone,concluí que estaria cansado de subir a sua ladeira. daí a nada ia apanhar ar puro para longe, enrolá-lo nos dedos, afagá-lo na pele, perder dias inteiros a agitar os braços nesse ar, como se fosse pássaro e voar não tivesse segredos.