01 fevereiro 2012

os livros, pai



partilho aqui este filme de animação, que surripiei de uma das janelas virtuais mais ricas que conheço.herdei do meu pai o gosto pelos livros, pela fantasia que trazem dentro, pela companhia que nos fazem quando tudo parte, pela revoada de pássaros que levantam no marasmo, pelos mundos para que nos remetem, do lado de fora e de dentro. sempre o vi sentado num sofá parecido como aquele que aparecerá a dada altura no filme, desfiando livros uns atrás do outros, como se fossem a âncora que o mantinha aqui conosco, como se fossem as asas que o faziam voar por todo o lado, sem nunca sair do sítio. distribuía livros pelas filhas, com dedicatórias estudadas, das quais às vezes guardava um borrão. 
 
agora que o meu pai se foi embora (parece que foi ontem e a saudade aumenta sempre, como se o coração e a cabeça aguentassem expandir-se exponencialmente, assim), são as dedicatórias dos livros as cartas que nunca me escreveu, que animam os dias e as noites, quando parece que o vento sopra como um furacão; quando tenho um recado para dar ou para ouvir, são os livros que se sentam em volta, empilhados como muralha protectora ou espalhados no chão, cada um como pedra para saltar para a margem segura, como esteio para encostar uma ramada, uma lage ou um projecto.

disse-me muitas vezes o que quer que precises de saber ou de aprender, deve haver já algum livro sobre isso. com tudo o que sabia pelo que leu, podia ter escrito muito, podia ter escrito um livro seu. mas era um grande leitor, daqueles que só os bons escritores merecem e agradecem por os lerem assim, tão devotamente.

de cada vez que apanho um livro aqui em casa, ou o trouxe lá de casa, ou mo deu o meu pai, ou o comprei eu por alguma coisa que me disse, que o trazia curioso ou pela curiosidade quase ilimitada que me ensinou a ter. ao longo dos anos em que o soube doente, fui-lhe pousando compulsivamente no colo todo o tipo de livros, na secreta esperança que algum fosse âncora definitiva, remédio maior que o curasse.

ao arrepio do que lera eu num dos melhores livros dos últimos tempos, a louca da casa - que não lhe dei a ler a tempo e agora é tarde - , a senhora das tempestades levou-o quando trazia um livro a meio. mas eu sei que já tinha lido o fim - uma vez, numa das longas esperas nas urgências do hospital, quando lhe dei um rebuçado para distrair da boca do sabor amargo da dor e um livro novo a estrear, estendeu o papel do rebuçado e entalou-o dentro do livro, depois leu o primeiro capítulo e a seguir o último. quando lhe perguntei a razão de ser do gesto, piscou-me o olho : gosto de saber como o autor vai resolver o livro no último capítulo, depois ter visto como começa. agora que sei como acaba, vou ver as voltas que deu entretanto. e assim, de alguma maneira, nunca fica nenhum livro por acabar. rimo-nos os dois pela aparente batota. deixou um livro a meio, a máquina de fazer espanhóis, do qual cheguei a ler passagens em voz alta para lhe entreter a espera quando não conseguia ler ou só para provocar quem esperava e desesperava ao seu lado e, ouvindo a leitura pelo canto do olho, tinha um motivo para sorrir.

eu ainda leio em voz alta muitas vezes; sublinho livros, que foi coisa que o meu pai nunca fez; escrevo dedicatórias, mesmo nos livros que não sei se os destinatários já têm, perco-me horas a fio a ler e perco a estação de combóios onde ia sair; e quando perco um livro, perco um pedaço de mim; tenho um atril onde pouso os livros que trago às voltas, dentro e fora.

obrigada, pai, pelo que te pertence de tudo isto. e por ser tudo isto aquilo que me fez ver este filme de animação e com um mar a desabar dos olhos, dedicar-to assim.