04 outubro 2010

olhar, ver, reparar ou fernando pernes

"se podes olhar, vê; se podes ver, repara".
do livro das evidências, epígrafe no ensaio sobre a cegueira, josé saramago.

fernando pernes levou-nos pela mão numa visita guiada a barcelona, com a fundação de serralves. e escrevo pela mão, porque, no meio de tanto e tão pouco que se diz sobre aqueles grandes que nos faziam vir até ali - antónio gáudi, joan miró e salvador dali, fernando pernes levava-nos seguros mas livres, a ver o que também ele tinha visto, a não termos medo de não vermos nada disso ou vermos outras coisas. deslizava na frente de quadros, de esculturas, de paredes, de janelas, com a leveza de um bailarino, parecia que mal pousava os pés no chão.mas dizia, em frases breves, aparentemente simples, seguras, o que cuidava que fosse importante. havia entusiasmo no que dizia, havia vontade de dar a conhecer e de partilhar. era muito magro (como as esculturas de giacometti), sobrava-lhe colarinho na camisa, ombros no casaco, fumava muito, SG gigante, se bem me lembro, tinha sempre o olhar perdido num horizonte diferente do nosso. via e fazia ver coisas nos quadros, nos gestos, no que estava fora deles; nunca mais fitei um quadro ou o que fosse da mesma forma. guardo o seu olhar enternecido e a sorrir-se, tímido, quando lhe agradeci a viagem e as suas palavras e os seus silêncios. segurou-me nas mãos, "ora essa, não tem nada a agradecer." tenho sim e é para a vida, suspeitei então, sabê-lo-ia mais tarde, do quanto seria revolucionária essa nova forma de olhar. quando, há alguns anos já, me perguntaram, frente à praça dos leões, como podia ver tanta coisa num quadro e depois, quando, de frente para esse quadro, pousado na parede branca aos pés da cama, me voltaram a perguntar como?, falei de fernando pernes, de barcelona e de como tudo começou.e talvez aí tenha transmitido algum do espanto, da curiosidade, da atenção, do olhar que recebi naqueles dias. tarde, digo daqui, muito obrigada.

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