13 abril 2007

in memoriam JSL



Anda
tira essa dor do peito, anda
despe essa roupa preta e manda
seu corpo deslembrar

Canta
vira dor pelo avesso
Canta
larga essa vida assim as tontas
Deixa esse desenganar

Calma
Dê o tempo ao tempo, calma
alma
Põe cada coisa em seu lugar
E o dia virá, algum dia virá
Sem aviso

então...

maria rita canta "sem aviso" in "segundo".

você foi-se embora sem aviso e eu ainda me trago revoltada.

mas, depois, é esta música que o oiço sussurrar-me, a cada passo : quando fumo, a travar, desobediente, as cigarrilhas da última caixa que recolhi da tabacaria no domingo à noite, o braço direito ao peito, pela queimadura da doçura de sábado; quando fito a fotografia em que me fita você, com ar de sonho e de desafio, ainda no almoço do verão passado; quando, sentada na cadeira da minha sala virada a sul, a faço girar até ficar ela mais tonta que eu e penso que são quase seis da tarde e é quase hora de o ouvir falar do futebol do fim-de-semana e do jornal lido de supetão ao almoço de hoje; quando me sussurro "espinha direita!", quando me tentam vergar, a cada passo; quando me lembro de uma das nossas últimas conversas na madrugada, sentia você que o rondava a senhora das tempestades, tinha medo de ir dormir, "que cobardia ir-mo-nos no sono de olhos fechados", disse-me tantas vezes. ficamos à conversa, eu a ler-lhe daniel faria, o jornal e mais que trazíamos por discutir. nessa noite, quase nascido o dia, concluiu "um homem nunca está sozinho nem se pode dizer infeliz quando tem alguém por quem chamar às 03.00 da manhã.fazes-me falta, rapariga." eu soltei uma gargalhada e disse-lhe que eram cinco da tarde, "não deve ter visto bem as horas no seu relógio". riu-se também, foi dormir sem medo.

hoje pus uma camisa branca, que a esta hora da tarde já trago arregaçada pelos cotovelos, como se escrever e virar papéis do avesso fosse trabalho que exigisse estes preparos. exige, pois, parece tenho sempre mais calor que as outras pessoas, que a minha primavera chega sempre mais cedo, que por muito frio que esteja, tenho de escrever com as mãos libertas, os braços nus, nunca soube trabalhar de casaco. como se a escrita fosse um trabalho que exigisse liberdade de movimentos, como se libertasse calor e exigisse a libertação da roupa constrangedora. "escrever para ti parece um trabalho braçal", comentou tantas vezes do corredor que calcorreava na sua passada lenta, curta, falsamente arrastada, que o levava a todo o lado.

em tempos, disse-me um arquitecto ensonado que se descalçava para projectar, precisava de sentir os pés nus pousados na cadeira do estirador, ficavam a balouçar no ar, como se descolado do chão pudesse assim voar melhor. você voava para todo lado quando pousava uma caneta no papel e nunca precisou destas coisas. a liberdade de pensar e de escrever de um homem só pode depender do que traz dentro da cabeça e do coração, sei-o agora, ensinou-mo você.

li no jornal de há dias que niemeyer vai fazer 100 anos. caramba, também ele levou uma vida boa - a meio, já iria desta de papo cheio e,no entanto, ficou aqui até hoje. porque o mereceu ele, por que não você? num dos nossos almoços, lembro-me de termos comentado a biografia da vida dele, "as curvas do tempo", de lhe ter mostrado as passagens que sublinhei e de ter servido de mote para discutirmos a forma que revestiria a história da sua vida. nessa altura, disse-lhe que começar-se a escrever uma biografia não é assumir-se que a vida terminou - é apenas sinal que estamos prontos para escrever sobre ela e sobre todas as pessoas que ficaram em nós, mesmo que não conosco.cedeu, disse que ia pensar. e sei que tanto o pensou, que o escreveu - exibiu-me uma vez o moleskine de folhas brancas que lhe oferecera num natal, recheado de anotações, desenhadas com sua letra miudinha."isto é começo, agora vou precisar de um caderno maior". o que isso me deixou feliz.

a camisa branco que trago, noto agora que a pus num dia que em que nos encontrámos, falávamos da importância dos grandes projectos no destino de um país - e o impacto que deixavam na geração que os tinham sonhado,construído ou recebido. e de como isso, às vezes, podia ocorrer dentro da mesma geração e que diferença lhes faria, ver um projecto ser lançado e cumprido. assumimos aí compromisso de pensarmos demoradamente sobre isso, você disse que ia dar pano para mangas, era tarefa vasta e que ia levar o seu tempo. "tempo é o que não nos falta", respondi-lhe. não sabia que me enganava eu.

há tempos, numa entrevista , escrevia-se "alguém tem de se sentar a pensar". e pensar foi o que você sempre fez de melhor. quando o via sentado, horas a fio, de charuto ao canto esquerdo da boca, a fitar o tejo, os braços entregues aos antebraços da cadeira, uma folha branca nas suas costas, pousada, inerte, serena, na secretária, sabia que estava a pensar. entrava no seu gabinete só se o assunto fosse mesmo sério. ou se a banda desenhada desse dia fosse mesmo muito boa. "que desfaçatez!, interromperes-me.que me querias?", e eu, séria, dizia-lhe, "não fique no mundo das ideias, vá escrevendo, preciso de o ler." e então pousava-lhe mais uma notícia respigada do jornal, oferecia-lhe a esquinada uma página do livro que andava a ler, ou então confiava-lhe mais uma carta minha,na sua mesa, para ler no fim-de-semana, e fazia-o muitas vezes sem que apercebesse da minha entrada e saída, só ouvia já no comboio, a queixar-se "então, como se eu não tivesse já muito que ler e em que pensar!, e depois, na mesma fracção de segundo, já a desfazer-se em ternura, acrescentava "obrigada, rapariga.até logo."

entretanto, no fim da promessa ao almoço, entornei nesta camisa branca, entre gargalhadas, o meu café então já sem açúcar. pedi licença, ainda a rir, fui passar água fria na camisa, lembro-me de uma casa de banho preta, no hotel des arts, que fazia parecer sinistra a minha cara ao espelho. quando regressei, o empregado atendera um dos meus pedidos do almoço, fora saber quem desenhara as avestruzes que corriam a galope no mural do fundo da sala onde almoçáramos. você riu-se e justificou "peço desculpa, mas a curiosidade desta senhora não tem limites", e eu defendi-me "aprendi consigo". e o orgulho que tenho nisso, calei então, escrevo-o agora.

levantámo-nos depois ambos, lentamente, como sempre, você olhou para o relógio,"ainda é cedo" e decidiu esperar a hora de irmos embora sentados no sofá da entrada, lado a lado."parece-me que trago o relógio fora de horas e de dias", ofereci-me para lho acertar, suspeitou das minhas mãos quadradas, dos meus dedos redondos, temeu pela sua falta de destreza, mas não o suficiente para me dar notícia, em voz alta, do seu receio; pousei a sua mão no meu colo, retirei-lhe o relógio do pulso, acertei os dias, depois as horas, que conferi pelo meu, depois de lhe subtrair o tempo do adianto que sempre lhe dou, como se assim vivesse a mesma hora duas vezes, apertei-lhe de novo o relógio no seu pulso, depois de o ter encostado ao meu ouvido. então?, e você deu-me um beijo carinhoso, como sempre, na minha face esquerda, disse-me "muito obrigada, rapariga, agora trago o tempo acertado por ti e nunca mais as minhas horas deixarão de ser as tuas também." o som do seu relógio favorito ainda ribomba no meu coração.

sabe, desde o dia em que você se foi embora (dia em que eu não cheguei a tempo de o ver uma última vez), voltei a trazer o relógio no pulso esquerdo. em julho de 1999, deram-me um relógio novo e decidi que não ia mais esperar por quem não vinha, e passei a trazer o relógio no pulso da mão direita : porque assim tinha de parar de escrever para saber que horas eram, porque assim seria menos brusca, por trazer no pulso direito a fragilidade daquele objecto. porque queria ver o tempo de uma forma diferente, a começar pelas horas de cada dia e de cada noite.

agora que não o tenho a tomar conta de mim como até aqui, a berrar-me umas vezes, a rir-se comigo outras tantas, agora que sei que não voltará a chamar por mim, para saber que ando a fazer, a ler, a escrever e a contar, sei que o tempo que me espera é outro, será o tempo de crescer e de cumprir tudo que me disse poder esperar de mim, "de uma mulher assim espera-se tudo!", dizia-me a cada passo, para me meter medo, para me fazer ganhar coragem.

agora, todos os dias, antes de sair para a rua, de meter o pé à porta, é o último gesto que faço, afivelar o relógio no pulso esquerdo - como se até aí, não tivesse pressa ou necessidade de saber a quantas ando. fito-me ao espelho, de raspão, já sei de cor a cara que trago, saio porta fora, desço as escadas num salto, faço de conta que tenho pressa e vontade para chegar a qualquer lado, retomo a frase que uma mãe diz ao seu filho, no filme de todd field, "todo ser humano é um ser corajoso, porque luta todos os dias, mesmo sabendo que pode perder aqueles que ama". deve ser também por isto - e por julgar que nunca perderei tudo que me disse, tudo o que lhe respondi, todos os livros, todas as músicas, todos os abraços, todas as cartas, todas as conversas, todo o choro e todo o riso. eu sei onde o trouxe até aqui e onde o guardarei sempre, mil anos que sobreviva à sua morte.

receba um beijo desta sua menina tonta, que lhe acena com doçura da varanda e lhe diz que o espera bem.

"un bel dia vedremo", por maria callas.

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