07 dezembro 2010

o bom de nós



"O mal de nós é ignorarmos o bom de nós".

gonçalo nuno, jornalista, RDP 1.

obrigada pelo recado, lembro-o muitas vezes, a mim e aos outros. talvez não lho tenha agradecido em voz alta, talvez não lho tenha devolvido as vezes que devia e talvez o desfecho tivesse sido outro. dei por mim a pensar que talvez a vida fosse diferente se nos ouvissemos a nós mesmos. em ganapos, punhamos as mãos a tapar as orelhas para não ouvirmos o que nos diziam e falávamos ao mesmo tempo, a nossa voz ecoava na nossa cabeça, ensurdecia-nos, mas o que nos diziam que não queríamos ouvir desaparecia, disfarçado. e agora, crescidos?, pomos música a tocar para dentro das cabeças, orquestras inteiras, pianos solitários, para apagarmos o barulho dos carros, a chiadeira da cidade, e acima de tudo, as vozes que ecoam do lado de dentro da nossa cabeça. talvez seja por isto que não nos ouvimos e não sabemos por onde anda o bom de nós.deixei um ramo de cravinas cor-de-vinho do lado direito do caixão e repeti, sibilando, o recado que me deu.não importa repetirmos estes refrões, importa deixá-los tomarem conta de nós e agirmos de outra forma.

06 dezembro 2010

Fernando Narciso Neves

era pescador de água doce, caçador de montes íngremes, arquitecto maior com igual orgulho na premiada habitação a custos controlados, como nos hóteis em que quem lá dorme não cuida do preço.e talvez por conhecer tão bem o chão e os limites do céu riscava sem medo. tinha uma caligrafia desenhada, que lhe saía naturalmente, como um risco certeiro. no dia em que lhe disse guarde esta casa para mim, respondeu-me espero que seja muito feliz nesta casa, que a desenhei eu. e sou.
e pergunto-me quanto da minha felicidade deriva das formas da casa, do desenho das janelas, das divisões que se vêem de umas para as outras, da rua que enquadram, dos materiais do chão e das portas, das risquinhas das réguas das persianas na parede na manhã a nascente.

conheci-lhe momentos de fúria e de ternura no mesmo degrau da escada, no mesmo telefonema, na mesma ronda. saltava o muro para levar o cão a passear, saía de madrugada cedo ou na noite escura para levar o cão, para ser levado por ele. menina, o peixe fresco de angejas, fresco como não há nenhum, mais até do que se estivesse no mar, o vinho verde gelado, não há coisa melhor, quando vem almoçar?o ar sóbrio no rosto empedernido pelos contratempos dos dias era traído pelo olhar de um miúdo de 5 anos, umas vezes alegre, outras perdido de choro pela morte de uma cadela, encostado à parede, a desabar até quase ao rodapé, pela dúvida na venda de uma casa, pelas mãos que deixaram de se levantar do lençol e de esbracejar : de que me adiantam as asas se não posso voar? evitei visitá-lo, dei de beber à esperança - adiando a visita, talvez durasse mais e recuperasse alguma coisa, talvez o tempo, talvez a saúde.corrói-me pensar que o devia ter contrariado mais cedo, de forma mais séria, bruta até, podia ser que as coisas tivessem sido menos amargas.

guardo a voz cavernosa, umas vezes revoltada, outras a sorrir-se, sempre com todos os cuidados e mesuras; guardo a imensa esperança que me transmitiu, sempre, com orgulho desmedido, sobre a resistência de quem trazia doente e de como teve sempre tantos cuidados comigo e com os meus – e dava-me receitas, recados, lembretes.

vou-lhe estimar os seus, como me pediu.e o cão, a casa, o prédio.e continuar a perseguir-lhe os adversários, até que cumpram conosco o que falharam consigo.

onde estiver, espero que esteja bem.
agradeço-lhe, tardiamente tudo que fez e abraço-o já com saudade.




o voo do açor, terra de abrigo, ronda dos quatro caminhos