casa dos livres e dos livros
perceberia o meu Pai como, se calhar, mais ninguém, que
me desse ao luxo de trazer este vieira da silva das tapeçarias de portalegre para a casa dos
livres, só para poder olhar para ele horas a fio.
perceberia porque destinei parte do que me tocou nas suas
partilhas a pagar obras nesta casa, e a comprar os livros que ali lerei eu,
além das minhas visitas, dos meus hóspedes e dele, que o sinto ali, apesar de
nunca ali ter estado, de não ter conseguido que ali fosse a tempo.
perceberia que mandasse, um dia, mais cedo que tarde,
para geografias muito vernaculares na expressão, os estafermos que me
atormentam a paciência, e que ali me sentasse, detidamente, a ver a oliveira, a
laranjeira, o limoeiro, a romanzeira, a gâmboa, a parreira, todas as árvores a
medrarem, para lá do estio. e estas me vigiassem a mim, a ler, escrever,
dormir, virar uns tintos, enredar umas açordas.
perceberia o verso que as bicicletas no jardim evocam e a
razão por que me evocam a sua árdua juventude, de trabalho na volta do
azeite.
perceberia o preço que pago por tocar para a frente
tantas aventuras, tantos projectos, tantos sonhos ao mesmo tempo, e achar que o
corpo tem a morte toda para dormir.
perceberia que promova o regresso à terra e ao azeite, o
regresso aos livros e à escrita e ao discurso epistolar, o regresso ao chão das
coisas e das gentes, o regresso ao cinema e à música.
perceberia, fazendo perguntas, criando a dúvida,
mandando-me ler este e aquele que já por lá tinham andado. dar-me-ia alento,
mesmo temendo o risco corrido, a empresa proposta, o arrojo da ideia.
censurar-me-ia, na mesma frase, o entusiasmo e a desistência.
deve ser por tudo isto que dizem que nunca ninguém é
crescido que chegue até lhe morrer o Pai. agora fico aqui a ver se (me)
percebo, agora sou eu a fazer-me as perguntas que imagino que ele me faria e
dou-me as respostas. e fico a pensar o quanto foi uma sorte, apesar dos
pesares, ter convivido com aquele coração de boi (às vezes, tão partido) e com
aquela cabeça tão cheia (às vezes, também com tanto vento), ambos como os meus.
e é também por ele que tenho dito "não" a tanta coisa e a tanta
gente, porque "não" implica sempre mais coragem que medo - e este
senhor, que não sabia nadar, que tinha vertigens como eu, teve muita mais
coragem para se atravessar pelos seus : na escola, na tropa, no trabalho, no
hospital. e teve, ao mesmo tempo, a coragem de ficar com uma mulher que lhe
metia medo, o assombro da natureza que é a minha Mãe. talvez seja por isso que
sei que o meu Pai não tem igual.