11 abril 2011

aos meus pais, pelo trigésimo nono aniversário do seu casamento:entrar no amor como em casa

há meses já, numa sexta-feira à noite, fui ao cinema ver josé e pilar, sobre josé saramago e pilar del rio e sobre o amor deles. neste filme, pilar acompanha saramago sempre : na gestão da agenda, na travessia de mundos inteiros, no tomar de um comprimido, na leitura do correio e do jornal, no cozinhar e no comer, no receber e no visitar. e acompanha-o também nas horas longas, passadas com gente, dentro e fora de casa e nas horas ganhas em silêncio. melhor, pilar não o acompanha : eles fazem uma vida juntos. ela tem a sua própria voz, a sua vez, as suas reivindicações, as suas lutas, os seus livros, a sua cozinha. cada um é por si, mas é-o também graças à presença e alento do outro. a dada altura, pilar repreende saramago por se ter lembrado de subir de supetão e sem notícia prévia, à montanha mais alta da ilha de lanzarote – e chega a casa, já noite cerrada, os braços arranhados, o corpo dorido pelo esforço precipitado. repreende-o com raiva e com humor, temeu o pior mas orgulhou-se, entendi eu, da pequena traquinice de quem fintou o tempo e parou os relógios na hora em que a conheceu, para poder assim estar mais lentamente com a mulher da sua vida, que tardou tanto em chegar.

vi este filme e lembrei-me dos meus pais, de um amor conturbado, que chegou tarde (mas em tempo) e que demorou tanto a cumprir-se. os que lhe vaticinaram vida curta, invejam-lhe agora a vida longa. um homem mais velho com paixão pelos livros, mais pensador que fazedor, apaixonou-se por uma rapariga mais nova também com idêntica paixão, mas mais fazedora que pensadora. engenhosos ambos, tanto nas coisas simples como nas maiores, com escritas de génio e caligrafias impossíveis (que, somadas, deram origem ao meu arame farpado), sonharam sempre de forma corajosa, para si e para os seus, um mundo melhor, desse lá por onde desse. o pai queria ter sido médico, a mãe engenheira. talvez eu não estivesse aqui se cada um tivesse cumprido o que queria ser.eu pude ser tudo o que quis porque cada um deles fez por isso, à sua maneira.talvez o mundo tivesse sido diferente se tivessem sido o que sonharam. mas foi também diferente por terem sido o que foram e foi-o para melhor. poucas pessoas conheço que tenham cumprido o verso “põe tudo quanto és no mínimo que fazes”. e o exemplo sério faz-me medir cada gesto e repetir muitos.
todos estes anos os ouvi falarem dos mesmos professores, das mesmas terras, do mesmo chão, da mesma política, da mesma mágoa com ingratidões e incompreensões; citam a mesma história e admiram gestos diferentes; gostam de partidos diferentes e de clubes de futebol diversos, nem sempre explicitamente. sintonizam quase sempre a mesma rádio, partilham o mesmo jornal, e tudo isto deve vir da partilha de uma noz aberta a murro, na prateleira perpendicular à janela de um comboio com bancos de madeira. sabem de cor as mesmas linhas de comboio e os percursos dos mesmos rios e de coração coisas muito mais sérias que estas.gostam os mesmos livros antigos, dos mesmos cacos velhos, da mesma loiça nova, de relógios de vários sons e feitios, de rádios, de cães e de gatos, de árvores frondosas, de casas soalheiras, de pomares de laranjeiras, de parreiras de vinho americano no verão, de pessegueiros bravos no quintal a relembrarem o regresso da primavera. no 25 de abril punham a grândola aos berros dentro do carro, com as janelas abertas, para surdos e esquecidos ouvirem melhor. nenhum deles dança e dificilmente canta; nenhum deles sabe nadar e nenhum anda de bicicleta. falam francês melhor que inglês e comovem-se ambos com as mesmas músicas, ainda que em dias diferentes.nunca vi o meu pai correr e sei que a mãe está contrariada se estiver sentada. mas andam sempre a par e passo, ainda que possam não estar na mesma volta. dizem mal da vida quando não sabem da chave, quando o telefone pára de tocar quando lhe chegam ao pé, quando batem com a cabeça num armário e todos os objectos mudam de nome. a mãe gosta de cozinhar, o pai de comer - e não sei qual das coisas levou à outra, embora suspeite que há um movimento de leva e traz.

num livro que lhes emprestei em tempos, há um verso que diz “cada um de nós é um lugar para o outro.” poucas pessoas conheço que sejam assim - e vejo que cada um está em casa, no seu lugar, quando o outro está presente, não necessariamente por perto.e por serem lugar um do outro, criam também lugares à sua volta, onde estiverem, põem a mesa ao redor do coração. e quem se senta à sua mesa leva sempre mais alimento que a comida boa que teve no prato. quem nos dá assim de comer, de beber, de ler e de ouvir, quem nos faz trazer a espinha direita, a cabeça levantada, a fitar o que vem longe mas que vamos lá buscar, quem nos traz o alento, o mimo, o colo, o abraço, a condescendência, o riso e o choro, mas também a exigência, a pergunta, o confronto, traz-nos tudo e este tudo é sempre, quase sempre, mais do que merecemos ou sabemos receber.foi assim que ganhámos o amor aos livros e ao estudo, a noção da liberdade e da reivindicação, da amizade e da solidariedade, a medir nos dias de crise e de luta. e ensinaram-nos ainda que de nada vale andarmos de bem com os outros, se de mal conosco. e é também por isto que nos têm encorajado a aceitar desafios sem medo, que venha o que vier, haverá sempre um porto de abrigo e um prato de sopa na casa dos pais.

mil anos que viva, suspeito que não consiga fazer por cada um e por ambos nem metade do que fizeram por mim até hoje. mas como o tempo que contamos hoje sabe ainda a pouco, apetece-me dizer “39 anos? só?” e rir-me convosco.

não vos peço desculpa por esta festa feita correr, pelas linhas escritas à pressa, pelos bolos batidos às três pancadas : foi chamar quem gosta muito deste vosso lugar e tchus, está feito, que foi convosco que aprendi que a vida é para hoje e que a poesia é para comer e que é possível entrar-se no amor como em casa.
beijo-vos e abraço-vos com ternura e orgulho.
até para o ano.

a rapariga do meio.

versos em itálico emprestados de manuel antónio pina, josé saramago, ricardo reis, daniel faria, natália correia."com um brilhozinho nos olhos", de sérgio godinho, à hora do brinde.