22 abril 2009

"não vou, não vou"

Mãe, eu quero ir-me embora – a vida não é nada
daquilo que disseste quando os meus seios começaram
a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,
murcharam tão depressa as rosas que me deram –
se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu
deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.

Mãe, eu quero ir-me embora – os meus sonhos estão
cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,
só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais
que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos
os sonhos que tiveste para mim – tenho a casa vazia,
deitei-me com mais homens do que aqueles que amei
e o que amei de verdade nunca acordou comigo.

Mãe, eu quero ir-me embora – nenhum sorriso abre
caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.
Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez
não chames pelo meu nome, não me peças que fique –
as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-me
embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue
de uma ferida que se foi encostando ao meu peito como
uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.

Mãe, eu vou-me embora – esperei a vida inteira por quem
nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta
hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.
Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas
essa voz, tu sabes, não é a tua – a última canção sobre
o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias
foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão
tão grande, e as rosas que disseste um dia que chegariam
virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.

Maria do Rosário Pedreira,
in "O Canto do Vento nos Ciprestes", Gótica, 2001.


ouvi a entrevista na TSF antes do concerto que lamentei perder.depois da luta da manhã,oferecei-me a caixa de música, rebuçado merecido, vim pelo caminho que nem dei por fazer, a ler as letras antes de ouvir a música, como no outro dia fora ver o filme depois de ter andado anos a sonhar as imagens daquela banda sonora antecipada.não

revejo-me (demasiado?, mais que espelho), em quase todos os versos, na doçura amarga do canto, contraditória com a forma ridente da conversa.trago as músicas e as respostas da entrevista transmitida a segurarem-me o coração nesta espera, como mãos que escoram a água salgada em que me desfaço em segredo; esta escora sustenta-me na travessia demasiado lenta de todas as noites, agora maiores, paridas, o dia nunca mais amanhece, acordo de dia e é ainda de noite, será dia só aquele que acorde contigo uma e outra e outra vez, mil vezes sem que nunca me canse.

trago rosas já abertas, quase a desabarem de tão floridas, na jarra de vidro fino, pousada em cima da mesa branca na sala azul escura, onde recebo quem se intriga levemente com o cabelo cortado rente à alma e se deixa logo distrair pelo cheiro das flores maduras. se quero flores, roubo-as eu; tardam teus gestos; mas será de perder de vista o jardim que virá contigo, um dia.

passa da meia-noite e oiço os ruídos de uma casa quieta, por vazia de gente. há livros que desabam nas estantes, louça que estala nos armários, folhagem dos vasos a raspar nos vidros da janela da sala às escuras. a gata recuperada de jardim alheio dorme em cima do meu pulso esquerdo, entregando-se ao sono, cuidando que a noite voará assim num ápice, não tarda voará do alto de laranjeiras.tenho vontade de agarrar um lápis colorido e de escrever versos e votos nas paredes, para depois ao percorrer a casa no escuro, ler o caminho de regresso pelo dedos. a ver se assim entra em mim, pela leitura que fazem os dedos, o que não entra pela escrita. queria não gritar em surdina "não vou, não vou". queria outro verso para nós,"nada entre nós tem o nome da pressa." mas não te demores toda a vida, que não temos assim tanto tempo pela frente, para dar vazão a tudo o que nos propusemos fazer, escrever, desenhar, cozinhar, dormir, ouvir, criar.


mulheres ao espelho,aldina duarte.
http://tsf.sapo.pt/Programas/programa.aspx?content_id=917512&audio_id=951367
a eternidade e um dia, eleni karaindrou.cinema cidade do porto.
a casa quieta, de rodrigo guedes de carvalho.estante do corredor, fila de trás.

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14 abril 2009

mondar

Il a mis le café
Dans la tasse
Il a mis le lait
Dans la tasse de café
Il a mis le sucre
Dans le café au lait
Avec la petite cuiller
Il a tourné
Il a bu le café au lait
Et il a reposé la tasse
Sans me parler
Il a allumé
Une cigarette
Il a fait des ronds
Avec la fumée
Il a mis les cendres
Dans le cendrier
Sans me parler
Sans me regarder
Il s’est levé
Il a mis
Son chapeau sur sa tête
Il a mis
Son manteau de pluie
Parce qu’il pleuvait
Et il est parti
Sous la pluie
Sans une parole
Sans me regarder
Et moi j’ai pris
Ma tête dans ma main
Et j’ai pleuré.

Jacques PRÉVERT, Paroles (1945)©1972 Editions Gallimard

este poema tinha fugido do livro, porque temia ser lido e servir de aviso, de legenda para fotografia adivinhada, para passado alheio, para futuro temido. dias depois, ouvi-o com um sotaque antigo de quem aprendeu francês nos livros e depois o foi rever a paris.

não serei eu quem segura a cabeça pesada, pousada nas mãos vazias, disse, decidida. depois pensei : este verso podiam dizer-to, há tempos atrás? ou podias sublinhá-lo tu, ainda hoje, mudando-lhe o género? e quem serás hoje, mais quem olha ou mais quem se vai, sem uma palavra sequer?esperas ou és esperado?

como posso eu compreender que alguém se deixe ficar a chorar depois deste pedaço de filme mudo e a ele regresse, todas as manhãs? são precisos dois para dançar o tango; são precisos dois para sofrer assim : quem faz os gestos como estivesse só, ao espelho e quem a eles assiste como se aceitasse a solidão imposta, remetendo-se a uma secreta esperança de que será diversa a manhã seguinte, embora nada fazendo para isso.

deste lado da rua, convido-te para um café na madrugada, ouves daí?, já está escolhida a música da dança da manhã, respigada a poesia da estante e sussurada ao ouvido já na saída ou dita secretamente para a caixinha dos recados; deste lado da rua sabes o que te espera; e quando tardas e quando não vens ou quando te vais sempre demasiado cedo, sou eu quem chora silente, não como a mulher do verso, mas por a felicidade ser tão intermitente e tão fugaz, saber sempre a tão pouco, ainda assim contente e comovida com a alegria que tanto promete a migalha do pão da manhã. é muito diverso aqui o café da manhã; agrada-te? que farás para doravante o tomarmos juntos todos os dias, no novo jardim, saídos da cama, os pés nús no chão gelado?

não gostas de leite sequer. e o café leva contigo o acúçar primeiro.comigo, aprendeste que não se mexe o café alheio, cada um sabe do seu, como o prefere mais doce ou o aguenta mais amargo.há quem beba o café amargo, para assim circunscrever a amargura do dia logo cedo.

mas pergunto-te pelo café da manhã da música do chico, onde se berra compassadamente
"eu quero que você venha comigo". quando será teu também este verso, cumprido em cheio?

a gata cansada de perseguir melros na laranjeira toda a manhã, debaixo da chuva, dorme no meu braço esquerdo. da outra sala ecoa música" a eternidade e um dia", de eleni karaindrou (será este o tempo da espera?) já sei a música quase de cor, amanhã vou conhecer o filme, temo que fique aquém do que o sonhei dentro da minha cabeça, ao ouvir a música de avanço, anos antes.

há muitas flores semeadas pelas jarras da casa, trouxe a primavera para dentro de todo este papel. agora a estrada corre nas minhas costas, em vez de advir da esquerda, como a luz. pode ser que assim me concentre em escrever escrever escrever desenhar garatujar escrever desenhar fotografar escrever escrever mondar mondar escrever de novo, não olhes para o caminho, monda teu milho bem, para que cresça de folha larga. e tu, mondarás também, para que o teu milho cresça como o queres?