23 dezembro 2009

saber ser rapariga

e se, por não saber cumprir, meia-horinha que seja, o conselho "just be there, be beautiful,be quiet"?, fosse antes assim :
“As raparigas amam muito. Riem
atrás das mãos uma manhã inteira
para esconder o vermelho dos
beijos que alguém lhes roubou e
um nome que vão deixar escapar
entre as primeiras palavras que
disserem. Vestem do avesso os
aventais de chita e fazem o leite
sobrar do fervedor e o caldo ser
mais salgado do que o mar. Mas

é bonito vê-las caminhar descalças
ao longo do corredor, como se
pedissem um par para dançar. As
raparigas amam tanto. Sentam-se
em rodas de segredos uma tarde

inteira e esquecem no tanque os
colarinhos sujos das camisas, e os
cueiros, e uma barra de sabão a
derreter-se como o seu coração.

Mas é bonito vê-las beijar a boca
ao espelho no quarto das traseiras
e também a outra boca no retrato

que a seguir escondem amordaçado
na algibeira, não lhes cobice alguém
o que não tem. As raparigas amam

de mais. Deixam-se ficar sem dizer
nada uma noite inteira, bordando
no linho dos enxovais letras secretas
ao calor do fogão. E picam os dedos

distraídos nas agulhas que usaram
para descobrir o sexo de cada filho
que terão num jogo que jogaram
entre elas à tardinha. Mas é bonito

vê-las ao serão, quando o vento as
chama atrevido da cozinha e dão
um pulo seco na cadeira, e largam o

bordado e a lareira, e correm até à
porta a colher beijos que lhes deixam
risos nos lábios tão vermelhos como
as mais doces cerejas deste verão."

Nenhum nome depois, de Maria do Rosário Pedreira.
Hoje, carlos vaz marques entrevista a escritora-editora na TSF.

14 dezembro 2009

amor aos bocados, de forma inteira

Dose da fatia de um doce

dá-me um bocadinho do teu amor     todos os dias
não mo dês todo hoje        que amanhã vou precisar dele outra vez
eu sei      conheço-me bem
e nesse aspecto       sou exactamente como o resto da humanidade
preciso de ser amado todos os dias
só espero não morrer muito velhinho      para que o teu amor me
                                                                               [dure até ao fim da vida

joão negreiros, in «o cheiro da sombra das flores».

ontem peguei numa criança ao colo que quase me cabia na palma da mão (as minhas mãos são grandes), chorava e não me conhecia de lado nenhum.é filha de uma das amigas mais bonitas que tenho,das mais antigas e também das melhores. não precisamos de nomear as coisas e estamos bem assim. partilhamos cinemas, teatros, cafés, jantares de comida picante, saídas em dias sérios de inverno.a criança encostou a cabeça no meu ombro esquerdo, parou de chorar quando respirei fundo e fiz o meu coração bater mais devagar, de forma que a embalasse. a minha mão direita, a que escreve e tem,por isso, mais força, estava pousada do leve nas suas costas.sibilei uma canção de embalar, fiz-lhe uma festa na nuca frágil e deixou-se dormir. enquanto ela dormia, pensei nestes versos, do amor contínuo, em bocados infinitos, presente todos os dias. ter-se um filho é isso, se calhar, alguma vez o saberei?, falo de cor, ter-se um filho é gostar-se sempre de alguém, todos os dias, pois precisam do nosso amor, mesmo depois de nos irmos embora. em nome dos filhos diz-se tudo, faz-se tudo, pergunta-se tudo, e também, em nome dos filhos, se escolhe o amor ao medo, se escolhe o amor à solidão, se dão respostas a perguntas por fazer, se diz o que ainda não nos perguntaram, se luta até ao fim, preferindo sempre a derrota à desistência.


antes de sair, pousei-a ao de leve no berço que tinha vindo até à sala, a deslizar pelo soalho, para que aprendesse a dormir ao lado dos crescidos que conversavam. é importante uma criança aprender a dormir debaixo de luz, no meio dos sons e da multidão,ganha defesas para o que a espera daqui a nada, para a vida cheia, sonora, colorida, feliz, que a espera, impaciente.


"canção de embalar", zeca afonso, cantado por madredeus.

01 dezembro 2009

"ainda há futuros como antigamente?"

há um gato parecido com o de olhos azuis que aparece no seu blog que, às vezes, vindo de um país longínquo, vem comer à minha porta, mas nunca da minha mão, dorme na beirinha do muro do meu jardim mas eu tardo e ele vai-se embora cansado.sei que somos quase vizinhos, temo-nos cruzado por aí, mas eu que me perdi em todas as vezes que a nossa amiga comum esteve para nos sentar à mesma mesa, vou-me sorrindo de cada vez que nos cruzamos e eu não digo nada. eu tenho um quarto voltado a nascente pintado de verde chá e alface claro.gostei do desenho a grafite,com gato e tudo, quase fotografia.a minha gata não voltou há meses, deve ter sido seduzida por algum siamês danado, arranca-corações, despedaça donas de gatas que ronronam às seis da manhã a dizer "acorda lá, quero leite, ir à rua, ouvir o caetano, esgadanhar outra gente, comer mais duas folhas do antúrio, saltar do ramo mais alto da árvore ali do vizinho, despenhar-me do alto da laranjeira e trazer teias de aranha nas orelhas". e eu rosnava-lhe " é cedo, acabei de dormir, doem-me os dedos de escrever, tenho o tamborilar do teclado na cabeça, também quero café e torradas e jornal dobrado em dois e chuva na cara e camélias floridas mas mais logo e não tenciono meter o nariz de fora, quanto mais o pé no chão, quanto mais os dois lá fora para te deixar no jardim." consenso : mais meia hora de sono, a troco de quase nada, um punhado de mimo.
ando há dias perdidos a congeminar o ensaio sobre o futuro e o mote que me mandou tem servido para pensar muito. mesmo que as linhas não cheguem aí, valeu a pena pen(s)ar na resposta.não sei se vou ter outro gato mas gostava.não quero que o ter um gato em casa me impeça de, perante uma reviravolta no futuro, de ficar por onde me chamem e não voltar sequer para aviar os livros. quero um gato em casa que mie quando chego, que faça mais barulho que eu, que faça barulho quando o silêncio pesa muito e não é música que quero ouvir e me apetece colo e não há gente.
não sei se tenho ainda "uma confiança danada no futuro" e se lhe estendo as mãos para dar ou para pedir.tenho-me perguntado se o não haver futuros como antigamente não deriva de andar a fazer menos no presente, como se uma coisa pudesse vir sem a outra, como se pudesse querer um futuro como antigamente quando já nao tenho um presente igual. suspeito que einstein tinha razão ,"eu não preciso de me preocupar com o futuro, ele não tarda nada em chegar." talvez seja por isto que vamos descurando o futuro, sonhando menos, sabemos que ele chega cada vez mais depressa, o futuro, ultimamente, chega ainda no dia de hoje.mas, por outro lado, suspeito também que  o futuro precisa é que não contemos tanto com ele, o presente é que tem de levar o melhor de nós, dizia uma frase de camus num documentário no outro dia, escrevi-a de cor nas costas de um envelope,perdi-o,cito o senhor de cor.soube há dias que o meu pai, que tem andado doente, poderá não ter todo o futuro que lhe sonhámos, que precisamos que tenha, que suspeitamos que quer ter, depois de quase não ter tido nem mais um dia pela frente sequer. faz-me pensar na nossa ambição de querermos sempre um futuro vasto, inabarcável e como tive de aprender a pedir um dia de cada vez, eu sempre tão sôfrega de tudo, vivendo antes cada dia e um de cada vez, de forma a que morresse com aquele dia no olhar, como aconselhava avisadamente truman capote. como se, em cada dia, tivesse de estar preparada para que não houvesse outro dia. quem não vive assim não pede outro dia, pede muitos dias, pede duas mãos cheias deles, para poder falhar muitos dias e ainda lhe sobrarem alguns para emendar a final.suspeito que possa ter razão aquela história citada por lobo antunes e por rosa mantero, sem que nenhum se refira ao outro (conhecer-se-ão?), em que dizem que há uma história que conta que a senhora das tempestades nunca leva consigo quem traga um livro começado por acabar. deve ser por isso que trago começada uma biblioteca inteira e adio o dia de terminar qualquer um dos livros começados. foi por isso que entreguei um livro com mais de uma resma de páginas ao maior leitor que conheço, o meu pai, e espero que o comece e que nunca mais o acabe, para que possa voltar a ter um futuro como antigamente.
sem dar por ela, acho que lhe disse o que iria dizer depois mais longamente, de forma mais cuidada e mais bonita. mas saiu agora e é por aqui que se fica.
um abraço.

in
http://adevidacomedia.wordpress.com/2009/12/02/ainda-ha-futuros-como-antigamente-xii/

antónio pinho vargas, solo 1.
maria schneider, sky blue.
r.leão, a mãe.