25 agosto 2015

memórias de elefante

há dias, persuadia a minha sobrinha que o mundo se divide entre os cabeças de alho chocho e as memórias de elefante. ando esquecida de muita coisa, a ver se me também não lembro das menos boas, e pergunto-me se alguma vez a laura terá noção do que será ser-se uma memória de elefante feliz, como era o avô manel (fora as vezes em que não sabia onde estacionara o carro, onde perdera as chaves de casa, onde estava o comando da televisão, onde se refundira o livro que estava a ler). no outro dia, colei na parede desta sala cor-de-laranja, onde jantámos tantas vezes, em dias bons e em dias piores, uma fotografia que me tiraram em paris, em dezembro de 2002 : tinha o cabelo comprido (quase tanto como hoje), tapava-me quase a cara, e estava de pé na place des vosges e escrevia. a laura olhou para a parede e disse “olha a tia léna!”. o que a terá feito reconhecer-me, numa fotografia de há mais de 10 anos atrás, ela que ainda vinha muito longe então, não me disse, não o saberia. eu sei o mestre que vejo quando fito o meu pai nestas fotografias e ele lê continuamente, desprezando estar em salas de espera que consumiam horas preciosas, só suportadas pela promessa de ganho de outras horas melhores; gostava de ser espelho, de me sentar assim, parada, absorta, a olhar apenas o livro que trouxesse nas mãos; e depois escrever sem parar, deixando de ter as mãos a fazer rendinhas, a dobrar papelinhos, origamis precários que o meu pai fazia com os papéis dos pacotes de açúcar, com as pratas de estanho dos chocolates, com a tirinha recortada do jornal do dia, quando já não estava a ler, era o livro que o lia por dentro agora, corroendo, desbastando, limando mesmo em silêncio. gostava de ler dias inteirinhos, sem mais nada, a não ser o ronronar de um gato que se sacode do sofá ao sol, o frou frou das copas das tílias, com as folhas dupla face, ora verdes, ora prateadas e o cheiro a verão, o chá de jasmim já frio na tigela chinesa, e uma teoria que, de tão dentro da cabeça, transborda das pontas dos dedos pousadas nos livros lidos para as pontas dos dedos pousadas nos teclados que abundam e suportam a demanda da teoria que coloque a pergunta certa, à qual não será assim tão importante ter resposta definitiva. se entrasses agora aqui, pela porta adentro, de facto, como entras tantas vezes dentro da minha cabeça, tantas, tantas que , às vezes, até duvido se não estarás mesmo aqui, se entrasses aqui, e visses o mosaico que se vai formando na parede, e visses os livros, tantos, pai, que se acotovelam a pedirem tempo e sossego, pai, se visses, pai, rias-te, de certeza, e perguntavas “ como vai isso, camarada?”, e eu responder-te-ia “ já faltou tudo; mas, pai, isto vai, isto vai”. a tua neta riu-se hoje como só tu te ris e, não tarda, estará a ler assim.não estamos sós.

01 agosto 2015

os quarenta

procurar, entre o que diz um texto e o que está fora dele, um laço clarificador. li isto há anos numa entrevista de maria joão seixas a antónio m. feijó e ficou-me de mote para o que andava a fazer então e que cumpro até hoje: ler, reler, tresler, derivar; e muito depois, tentar escrever alguma coisa, entre o dentro e o fora, primeiro a lápis nas bermas das páginas, depois nos cadernos, de todas as cores e feitios, enfiados numa vasta colecção de malas, entalados entre livros, depois abandonados nas estantes. trazem os cadernos receitas de cozinha, projectos de casas, percursos de viagens, contas à vida, cartas de amor e de ódio, frases apanhadas na rua, versos inteiros colados à pele, começos de romances, deixas de teatro, recortes de jornais, bilhetes de concertos, listas de desejos, desenhos, hipóteses da tese, e o mais que ainda lá caiba, advindo da cabeça e do coração, mas sempre a partir dos livros .na realidade, só existem os livros: e eu só cá ando a desarumá-los, a usá-los como mote, como pretexto maravilhoso, como expediente maior para aquilo que penso antes de os ler e não tinha noção, para o que penso enquanto os leio e depois derivo a partir deles,dispersa e infinitamente, para o que gostava de escrever depois de os ler e fico a pensar se ainda acrescentará alguma coisa. para que me serviram os livros? algures nestes anos todos, para vos dizer “ouve isto”, “espreita aqui”, “leva este”, “olha o que encontrei” e, agora no fim, para um desafiador começo de conversa, “o que me aconselha, mestre?”. depois, o laço clarificador passou a surgir também entre os que trago perto - quantas vezes o que faltava a quem conheço estava nas mãos de quem já conheço também (uns livros levam a outros, as pessoas também). e foi assim que, em todas as cidades onde vivi, fui juntando gente à minha mesa; uns foram-se afastando; outros persistem aqui e estão aqui hoje. outros gostava que estivessem e já não voltam - falta-me o meu Pai, que tanto me ensinou a saber estar à mesa, horas a fio, a desenhar uma letra que nunca saía direita, a ficar horas a fio sentada a ler, a escrever, a comer, a beber um porto, a ouvir histórias de pecados velhos e de sonhos para as lutas futuras; falta-me um mestre que se foi embora, que me ensinou a pensar e parar de pensar, para saber como tomar as grandes decisões da vida numa noite sentada na varanda, em tantas conversas desfiadas em longos almoços virados ao tejo; falta-me (apenas por estar longe) um amigo velho, que me explicou a revolução que traz inscrita uma verdade dolorosa e que me confiou um jardim a sul que sente a minha falta; faltam-me os que emigraram e estão hoje por aí fora, que este país não os soube guardar; faltam-me os que, querendo ter cá estado, não os deixou a vida que viessem; mas todos saberão que não é por não estarem que os esqueço ou que os quero menos; mas as festas fazem-se com quem está, com quem pode; ou adiam-se e depois podemos não cá estar nós. por isso vos recebo hoje, aqui, assim, a todos, com o que tenho em casa: com as comidas feitas pelas mãos mágicas das mulheres da minha casa, com as nossas melhores toalhas do enxoval, com os pratos que não tememos que virem cacos, com os livros espalhados por todo o lado, com a música que nos demos a ouvir ao longo destes anos, com os vasos a cheirar a verão; junto-vos a todos, no mesmo dia, à mesma hora, para a mesma festa, pelo critério mais simples : algures nestes anos tivemos conversas que me foram críticas, decisivas, estruturantes, fosse pelo momento, fosse pelo recado, fosse pelo abraço do fim, fosse pelo que fiz eu depois, fosse pelo que fizeram vós. hoje, aos quarenta, o que sou resulta também e muito dos debates que temos,pelo que destes me forma, reforma e desconforma; sou outra pelos combates que travamos juntos, a par, perto ou longe; o que nos espera acabou de começar e, ao mesmo tempo, receio que não tenhamos mais 40 anos pela frente e era bom, que ainda temos tanto para cumprir.pelo que vos devo, estou-vos grata; pelo que me falta ainda e pelo tanto que falho, peço-vos desculpa; pelo que ainda nos espera e pelo que ainda vamos buscar, trazem-me feliz, por vos ter do meu lado. https://www.youtube.com/playlist?list=PLIyP2o9tUd8u4D3vrAMv4IcLq-1KkU62v