21 julho 2005

existir para lá dos livros

termos os mesmos livros à cabeceira, a kilometros de distância,faz de nós cumplices da mesma almofada? e lermos as mesmas linhas, leva-nos ao mesmo sonho? eu queria era deixar os meus livros para trás e ir sentar-me a teu lado,a espreitar pelo teu ombro a página do mesmo livro, eu volto a página e tu lês, na seguinte trocamos, eu leio mais depressa, mas a tua voz é mais bonita.lermos o mesmo livro, a preguiçar no mesmo sofá, na mesma relva, debaixo do mesmo pinheiro,a vivermos a mesma história,sem os preocuparmos em a escrever noutro lado, que no lado de dentro do coração, rente à pele.sublinho a minha pressa em te rever como quem faz um sulco no chão,como arado de lâmina precisa que traça um limite humano para a saudade. no fim do verão, regressarás para onde? ao menos, o tempo que passo a trabalhar voa, voa, voa.cansado corpo, até à exaustão,o sono chega afinal devagar, como se fosse necessário recuperar forças antes de se entrar nos sonhos.onde vamos hoje, pelas páginas do mesmo livro?


josé gil, "portugal,medo de existir".
keith jarrett, the köln concert.

04 julho 2005

"i do not know what tomorrow will bring"

quando fiz vinte anos, marquei três objectivos para os trinta : saber conduzir,saber nadar e ter terminado o curso.

coisas simples e pequenas, não fora ter tido um valente acidente de carro anos antes, de que me lembro de cada vez que olho para o espelho; não fora ter-me quase afogado, por duas vezes, uma vez ainda catraia, outra já mulher feita; não fora terem-me desafiado para ir fazer fotografia e escrever, escrever, escrever, ainda o curso de direito não tinha mostrado o que podia fazer por mim e ainda andava eu longe de imaginar o que faria dele.por tudo isto, cada uma destas coisas pequenas era uma empresa séria.

primeiro, aprendi a conduzir e é hoje das coisas que faço com mais gozo, a toda a pressa ou distraídamente devagar.

depois, o curso ganhou lanço e compaginou-se com outros amores, paixões e desamores. era janeiro e chovia e, de cabeça, mergulhei num dos exames orais mais exigentes de que guardei memória – soube que não me deram nada, fui eu que tirei. lá fora, com um grande ramo de cravos e rosas, esperavam-me os pais e os amigos que lá tinham estado sempre e que, na sua maioria, ainda cá estão hoje.

mas faltava menos de meio ano para hoje e ainda não sabia nadar.em março,ainda chovia, fui-me inscrever num ginásio, risonha, para afastar vergonha e medo; comprei fato de banho e touca pretos, para parecer mais séria e esguia, uns óculos cor da água para destoar tanta seriedade e umas sapatilhas transparentes, a lembrarem as sandálias de plástico de quem andava aos mexilhões nas rochas escorregadias da praia das pedrinhas, na apúlia. aprendi a nadar e dou hoje comigo a prescindir do almoço, a apressar reuniões, que a aula começa daí a nada e não quero perder de aprender.
e à custa da natação, retomei a modéstia olhar,sem pressa, para quem sabe, para perceber como se faz ; recuperei a capacidade de decompor movimentos complexos em gestos simples, mais fáceis de superar.e ganhei a coragem das crianças - atirar-me de cabeça, depois logo se vê, o mais que virá poderá ser uma dor física, uma mazela ou outra, um pé esfolado, um braço dorido, uma água engolida por engano. é engraçado como se deixa de ter medo da dor física, por se saber que dói muito mais a dor do coração.

obra feita, que quererei fazer até aos quarenta? sei que dizer “I do not know what tomorrow will bring” é motivo primeiro para não se estar cá quando o dia acordar. sei o que já trago comigo. durmo sem medo.


"escada sem corrimão", camané canta david mourão ferreira.