13 junho 2007

q.b.

"Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará
Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua
É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solitário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã
Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tuido isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente
Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente."


a mão no arado, de Ruy Belo.


e como lembrava tom spandbauer no babelia de há semanas, não podemos acordar todos os dias com a memória de todo o desalento e desamparo que sentimos, ou não conseguiríamos sair da cama.há faltas de memória que agradeço. e nunca pensei vir a escrever isto. talvez um dia acordemos esquecidos de tudo e sorriamos de raíz.

pus uma orquídea na varanda a apanhar chuva, a ver se depois lhe nasce flor. às vezes, até as plantas precisam de receber outra água.daqui a nada quem vai sair para debaixo da chuva sou eu. sai mas é daí, rapariga,que me ficas doente.!, já te oiço, não sei se te ligo.

luz na janela


falávamos das luzes na janela que orientam o caminho de regresso. e de como uma luz acesa no parapeito de uma janela, sempre nos mostra que, naquela casa, sempre estão prontos para nos recolherem (como se uma luz acesa do lado de dentro afastasse a solidão da escuridão, como se uma luz acesa dissesse a quem ainda está do lado de fora que, ali, nunca se dorme sono tão pesado, de que se não possa acordar, com um sorriso para quem chega).

esta casa não é uma casa, é uma ermida. parece-me ter o mundo demasiado perto, mas dentro dela, se calhar, não se ouvem os passos em volta.talvez se oiçam assim melhor as vozes que ecoam na cabeça, vindas do coração.
e depois de uma tarde a fazer caminho, dá vontade de parar, entrar numa casa que tenha esta luz, para depois ver a manhã chegar e com ela, a clarividência sonhada, que sempre chega depois das noites em branco,na varanda.
losing hope, de jack johnson.
bernardo pizarro miranda, ermida do cristo do silêncio, palmela,
sublinhada por um grande quase-arquitecto, que me ensinou a ler desenhos. e a escrevê-los, também.

06 junho 2007

recado

fado alexandrino

amanhã chegaste à minha vida
e disseste bom dia e era noite lá fora
puseste-me na mesa o prato da comida
acenaste-me adeus e não te foste embora

e como era manhã vestiste o meu pijama
tomaste um comprimido para dormir acordada

como era hora do almoço chamaste-me para a cama
como era hora da ceia bebeste-me ensonada

e quando temos frio aquecemos à lua
as mãos que penduramos na corda de secar
quando mais roupa trazes, mais eu te sinto nua
e quando mais te calas mais te sinto cantar

vitorino canta lobo antunes.

não é de hoje que vou ouvir música para me distrair de ti e trago de lá recado de que não andava à procura. depois, logo no verso seguinte, pergunto se seria eu quem te sublinhava o verso ou se seria o inverso, como naqueles versos de sophia que trago colados à parede.

pendurei dois quadros novos na minha sala : a biblioteca de fogo e o pintor e o modelo. pendurei-os na madrugada, os vizinhos terão perdoado o barulho e percebido a urgência do capricho. ao contrário do filme, o quadro não ficou na árvore nem ninguém me amparava quando me empoleirei em cima da mesa. mas também não fez falta - só faz falta o que se tem, disse-me a minha mãe tantas vezes, enquanto me ensinava a abrir frascos teimosos na torneira da água quente e a perder o medo de cair das cadeiras mais altas.

vejo a biblioteca quando estou sentada no sofá e para ver a mulher sentada nua no chão em frente ao homem que a pinta, saio do sofá, ponho-me de pé, de costas para a biblioteca. que é como quem diz, sento-me para enfrentar os livros que ainda me ardem (porque os li contigo ou porque não os lerei de todo e era-nos importante) e levanto-me para olhar a mulher que é retratada, vejo que o pintor a fita não a retrata, os seus pés tocam-se, reparo que há quem não saiba manter a distância e assim o que está do lado de fora nunca mais sai também do lado de dentro. que é como quem diz, trazemos os livros às costas e à cabeça quando olhamos os quadros, fitamos os livros e levamos como pergunta as imagens para que queremos legenda. que é como quem diz, há livros dentro dos quadros (e versos a fazer desenhos, como naquela exposição de melo e castro em serralves) e há cores dentro dos livros, filmes inteiros retratos escritos do que somos nós. ou do que não seremos.

lembrei-me de quem uma vez, entrado em minha casa, percebeu à cabeça que la femme au mirroir era usado para legendar um espelho onde me via eu quando chegava sempre noite escura e onde me mirava de raspão antes de voltar a sair, para saber se cara que levava à rua era a que merecia o dia novo. é um luxo usar-se picasso para fazermos legendas à nossas caras, disse, sorriu-se para mim, rimo-nos ambos. ganhei nesse dia um sério critério : nunca aceitar para o lado de dentro da minha porta quem não tenha sensibilidade ou curiosidade para querer perceber os recados que tragos pendurados nas paredes, pousados no chão. como a fotografia da escada em caracol que parece um limão, que traz acima de si o coração em vitral dividido (ou unido?) pelo meio.

trago o cabelo quase rente, talvez mais esta vez tenha passado uma tesoura nos caracóis para ver se deixava de sentir neles os teus dedos, para poder dizer que o frio que sinto (agora que é quase verão) vem do cabelo deixado no chão, perto do mar. no outro dia, uma menina trigueira que fala como se escrevesse versos, perguntava-me "também tu trazes o coração na pontinha dos cabelos?" sei hoje que não, ou já me tinha passado a dor. mas é estranho, quanto mais corto o cabelo mais me fitam na rua, mais me sorriem, mas devo trazer-te ainda na retina e nota-o quem me fita. um dia...

vitorino na casa da música, 31.05.2007.
biblioteca de fogo,vieira da silva.
o pintor e o modelo,pablo picasso.