28 janeiro 2007

e no regresso?



pedro cabrita reis.paula rego.fernando calhau.amadeo perdido.noobai e tejo ganho.confeitaria nacional.agito de surpresa.tóquio até fechar.


e vir de lisboa a esbracejar, ainda que em silêncio. trazer cá dentro uma vontade de sacudir quem não responde; ou quem responde e depois se esconde a outra vez,no nevoeiro,atrás de uma folha estreitinha da tangerina trazida no bolso,atrás de trabalho,de reuniões e de turnos sem fim.

de cada vez que quero ter a certeza que não foi do lado da vida sonhada que as coisas se passaram, venho sentar-me aqui, nesta esplanada em matosinhos,onde cheira a mar se tiver sorte, onde cheira a petróleo,se os ventos não estiverem de feição.

olho estas mulheres que esbracejam contra o mar e lembro-me das mulheres da praia da apúlia em dia de naufrágio.e retomo barco negro, pergunto-me se é "por medo que me achasses feia" que me escondo eu ou te escondes tu.no outro di,arrumava cadernos antigos e encontrei uma linha roubada a uma entrevista de carlos vaz marques a amália,que voltou a passar quando morreu. ela dizia,lapidar: "estive quase para ser feia, estive quase para ser bonita, fiquei a meio." às vezes, passo no espelho e não me reconheço.e muito menos sei se também fiquei a meio.

já sou menina do meio, não crescida que chegue para ser levada a sério, não pequena que chegue para falar a brincar. há pouco dei por mim a procurar o equilíbrio na guia do passeio, os braços estendidos para os lados, como os espantalhos coloridos do castello-lopes,"o homem que queria ser tudo"; e quando dei por mim, satisfeita com a proeza, olhavam-me de soslaio as pessoas que, como eu, também iam para serralves,mas com outra seriedade.meninas do meio ainda podem andar na guia do passeio a desafiar o equilíbrio - só podem sorrir quando são olhadas,já não devem pôr a língua de fora.

espero nunca deixar de esbracejar,mesmo que por dentro, mesmo que silenciosamente,mesmo que não oiças nem vejas daí, mesmo que ouvindo e vendo, não me respondas. não é casmurrice,nem teimosia,é ingenuidade.

sabes?,quero-me assim, mesmo que não queiras tu.ou não te concedas querer.ainda me trago com os braços ora estendidos como espantalho que se equilibra, ora retorcidos como mulher que reclama.estou aqui no intervalo do trabalho, mas sei que ainda estou também sentada no último muro, antes do chafariz do fundo do jardim da casa de serralves,os pés suspensos no ar,os calcanhares dentro das sapatilhas de laços compridos a baterem contra o muro,alternados,e eu a rir,a rir, descarada, sonora e indiscretamente,de frente para o sol,do calvin da manhã.



"beatriz",por maria joão e mário laginha.

14 janeiro 2007

de partida



medo

Quem dorme à noite comigo?
É meu segredo, é meu segredo!
Mas se insistirem lhes digo.
O medo mora comigo,
Mas só o medo, mas só o medo!

E cedo, porque me embala
Num vaivém de solidão,
É com silêncio que fala,
Com voz de móvel que estala
E nos perturba a razão.

Que farei quando, deitado,
Fitando o espaço vazio,
Grita no espaço fitado
Que está dormindo a meu lado,
Lázaro e frio?

Gritar? Quem pode salvar-me
Do que está dentro de mim?
Gostava até de matar-me.
Mas eu sei que ele há-de esperar-me
Ao pé da ponte do fim.

reinaldo ferreira

12 janeiro 2007

"verso ignorado"




queria sentar-me contigo no último degrau desta escada,deixar as sombras da grade fazerem-nos desenhos na cara,beijar primeiro o lado das sombras e depois o iluminado.queria depois dar-te um beijo e outro ainda, que se demorassem até ser tudo sombra e encontrarmos então no céu as constelações todas que guiassem nossos passos na escuridão.

falaremos a mesma língua,mesmo tendo lido as mesmas coisas, ouvidos os mesmos sons e pisado sempre este mesmo chão? retenho a imagem da mulher que perdoa (sem esquecer?)o homem que viaja sentado a seu lado; traz a cara voltada para o vidro e fita a paisagem que corre depresa do lado de fora; parece que é o lado de fora que está dentro de um aquário,de um casulo e afinal é o inverso; e depois,sem precisar sequer de olhar para o lado, encontra a mão do homem que a fita sem cessar. e segura-a, levemente, ele comove-se, não se sorri ele, sorri-me eu na cadeira.

hoje estou quase muda como a rapariga asiática desse mesmo filme,que escreve compulsivamente,quase não dou um pio.tanto mais difícil será sabermos qual é o verso que trazemos ignorado, fazermos entre as pontas soltas um laço clarificador? não me parece.anda daí.


"babel",de iñarritu.

07 janeiro 2007

play list




coeur, fais ton chemin
oublie, tous les chagrins
(...)
viens, encore une fois
prends moi dans tes bras

je veux seulement oublier
emballe-moi sous les nauges
doucement vient le soleil
bonheur aprés l'orage.


RL


há músicas que, mesmo que as ouçamos depois noutros sítios e com outra gente (porque há algumas que conseguem desdobrar-se assim),vão sempre pertencer a quem no-las apresentou,a quem no-las pousou no colo,depois de as julgarmos perdidas, depois de nunca sequer termos sonhado existirem.

há músicas que nos embalam quando os braços que queríamos que nos rodeassem foram embora ou tardam em voltar, como someone to watch over me, tocado por b. mehldau; há músicas que nos fazem perder o medo, como escada sem corrimão, cantada pelo camané; há outras que nos levam ao alentejo, numa nota só como o limoeiro na terra de abrigo; há outras ainda que nos arrepiam por dentro, como bola de meia, de seu jorge,como palavras que nos beijam,por carlos do carmo com carlos martins.

e depois há as que nos perguntam pelo que andamos a fazer ou a adiar - are you the one i've been waiting for?, into my arms, green eyes, de nick cave; you must believe in spring, de bill evans; verdes anos, de carlos paredes; oxalá de madredeus, la llorona, de chavela vargas.

depois há as que, sóbrios ou ébrios já, nos fazem sempre sempre marejar o olhar : a noite passada, de sérgio godinho, beatriz, na versão de maria joão e mário laginha, give me a reason, de portishead,veja bem, meu bem, de maria rita, this house is empty now,com burt baccarah e elvis costello, sttrugle for pleasure,de wim mertens, if it be your will,de l.cohen,na versão de antony; if i had you, por diana krall; quiet letters, de bliss; j´arrive, de j. brel, estrela da tarde, de carlos de carmo; pomar das laranjeiras,de madredeus.


e depois há as músicas dos filmes(de a.hitchcock,p.almodovar,c.eastwood,m.scorcese e ontem a de igñarritu); e as músicas que ouvimos nos cafés e nas livrarias e depois vamos perguntar, descaradamente o que era isto, que gostei tanto?.

tão importantes como todas as outras músicas que já trazemos,a ressoar na cabeça, mesmo quando em silêncio, a ribombar no coraçao, quando escrevemos ou falamos,as que tamborilamos com os dedos das mãos,são que estão por vir, as que irei conhecer, sublinhar, repetir, repetir, repetir, até soar diferente,até soar límpido em mim o recado que me queiras dar tu, inscrito no que trarás debaixo do braço, no bolso do casaco ou na caixa branca rectangular onde desfila a banda sonora dos teus dias. mais as músicas que descobramos ambos,ignoradas pelos dois.importante também será a forma como saberemos estar em silêncio a ouvir o mesmo som ou em silêncio depois de todos os sons se terem calado. a música que se ouviremos para cozinhar, para ler banda desenhada ao sol estirados no chão, para escrever,escrever,trabalho ou cognac; a primeira música da manhã, que se ouve do banho e a da última festa no teu cabelo,música que se deixa também dormir, devagar.a música que se ouve dentro de uma fotografia ou quando se anda à procura dela.as músicas que nos passam pela cabeça quando o tobogan desce ravina abaixo e das das viagens estrada fora, mar adentro. a música do choro e do riso,a da dança, da tempestade e da bonança.a música que sossega o coração e afasta a dor, a que indica o caminho, a que leva embora e traz de volta.

mostra-me o que ouves tu, mostra-me assim what are you made of,como pergunta aquela publicidade de relógios.mostra-me quando quiseres, quando o tempo deixar. mas mostra, que quero ouvir, até ao fim, até ao osso, o que ressoa em ti, para perceber o que te faz ter, na mesma fracção de segundo, um sorriso rasgado e o olhar com toda a água das marés vivas de agosto na praia da apúlia. mostra, que te oiço, que te escuto. não trago pressa, nem urgência - apenas vontade de te ouvir a ti e o que é teu, no tempo que queiras e de que me dês notícia.

entretanto, trago comigo o que perdeste e que te pertence.quantas vezes as respostas para as perguntas que fazemos nos são oferecidas por outra pessoa que não aquela a quem perguntámos; quantas vezes os objectos voltam às nossas mãos vindos de lados inesperados.o que nos pertence, às nossas mãos nos há-de vir ter, dizia acertadamente a avó que enterrei há pouco tempo. não percebi o que ela dizia então, era demasiado nova para tanto; mas hoje sei que as coisas, quando importam,voltam, umas vezes tarde, outras a tempo, às mãos, aos lugares e aos corações a que pertencem - voltam porque as vamos buscar,voltam porque no-las trazem depois de as terem encontrado perdidas.


mar adentro in en el alféizar - evocaciones de un piano andaluz, por andrés márquez.

café



recebo hoje o teu correio.embora traga saudades do tempo que tentavas responder ao que te perguntava, também leio(acima de tudo ?)o que eu não me escreves a propósito do que me mandas.

a história das bolas de golfe já a tinha ouvido e tenho ideia que já ta tinha contado, mas era com pedras apanhadas à beira do mar. e trazia outro sentido : dizia que cabe sempre mais alguma coisa na vida, desde que o queiramos assim. falava mais da importância de termos noção que há sempre lugar para mais alguma coisa, que cabe sempre mais um (como ouvia dizer em tempos, sobre gente que chegava, inesperada, para jantar e isso era sempre motivo de alegria e de festa).

sabes?, às vezes acho que os nossos coraçães também são assim : há uns amores maiores e outros menores e há ainda sempre algum cantinho onde lhe cabem outras coisas. o facto de caber não significa que se deixe entrar.ou que se impeça de sair.suponho que sei quais são as tuas bolas de golfe, os teus berlindes, a tua areia e o teu café. sei que darás conta deste recado também para ti (ou pretendes assim conseguir, um dia).

só queira que soubesses que tenho tomado muito café, as mais das vezes, sozinha, deliberadamente. embora isso se note, pelos vistos, tanto, que me apontaram hoje, tristemente, no Lais de Guia : então veio só?, que pena! , ao que respondi, de sopetão, ofendida : pena para quem?. mas confesso-te que gostava de lá ter estado contigo. chovia à séria quando saí e lembrei-me de um dia de temporal faz quase um ano daqui a pouco, quase nada.

mas o teu café comigo não tem data marcada. nem terá tão cedo. eu não sou, na tua vida (hoje?), bola de golfe, berlinde, ou areia. pelo que só depois de cumprires tudo o mais, terás tempo para mim. constato que tinhas razão : tenho muito para dar e teu frasco está muito cheio, já estava muito antes de eu lá entrar. e ao contrário do que dizia lobo antunes, nem sempre a nossa capacidade de abarcar aumenta com idade. eu queria ser abarcada pelo teu abraço,sem mais, mas cada vez o espero menos, para não sofrer a dor da espera.

ontem fui à galeria quadrado azul, na miguel bombarda,para ver uma fotografia que me estava reservada - as coisas que nos fazem sair de casa são estranhas; vi no jornal de manhã que a expsoição fechava ontem e alguma coisa me avisou que não podia perder.cheguei a meia hora do fim, ainda a tempo.

desfiei os trinta minutos quase todos em frente à fotografia : uma mulher sentada numa cadeira tricotava a roupa que trazia vestida : a malha feita era um vestido trazido em cima do corpo, moldado à pele e no chão estava um novelo sem um gato.
pensei : penélope com a espera vestida, a fazer tanto parte dela que lhe veste a pele. lembrou-me um quadro da última exposição da paula rego, em serralves, com a mulher sentada numa cadeira, com a pele de lobo vestida; lembrou-me, em espelho, ainda a minha única resolução de ano novo : ser esperada e não esperar.

depois pensei que quem não quer viver à espera não pode entretecer a espera, viver os dias e as noites como um entretém que se cumpre enquanto o mais não chega. um entretém é uma coisa que se tem no entretanto? hoje percebo que algumas das coisas que fiz na minha vida não chegaram sequer a ser entretens ; depois, que não fiz nem fui o tanto que podia ter feito e sido.

mas logo retomo a frase do benedetti (que ainda não me devolveste e que aguardo - pretexto para antecipar o café?) : tengo las manos vacias de tanto dar sin tener /pero las manos son mías. sabes? quem espera, às vezes, esquece-se disto : que as mãos estão cheias antes até de chegar quem se espera; e que não ficam vazias ( porque ficam conosco) quando quem cá esteve brevemente (mesmo depois de tão esperado) se vai embora.

depois lembrei-me ainda da demorada, dolorosa e importante conversa de dois dias antes, com aquele amigo que me apresentou wim mertens há muitos anos atrás. disse-lhe, a dada altura, que era importante tornar-se a espera produtiva, fazer-se no tempo em que estamos sós, mais do que só esperar, fazer-se mais do teia que nos proteja do frio, fazer-se de nós coisa que valha a pena correr-se para e com muita muita pressa, toda a vontade.

tanta coisa para só isto : para te dizer que, quando a tua vida permitir e a minha vida também, terei todo o gosto de tomar café contigo.sempre sabendo que há bebidas amargas que nos incendeiam o coração. sempre sabendo que dificilmente terás tempo para esse café para breve, por as bolas de golfe, os berlindes e areia dentro do frasco te levarem quase todo o tempo que de dispões. mas promete-me uma coisa : que, em tendo tempo, tomarás, pelo menos, café contigo mesmo, breve que seja, num sítio bonito a cheirar a mar ou ao monte, onde se oiça a chuva ou o barulho das árvores ; e que evocarás então daniel faria e todos os outros que tive o gosto de te sublinhar, arrogantemente, como se esquecesse que leste muito mais que eu. e que serás, também então, pelo menos durante o tempo que te leve esse café, tremendamente feliz.

um beijo e um abraço com ternura e amizade.