21 março 2007

perder o medo

há-de flutuar uma cidade...


há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado

por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentado à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração.
mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade


al berto, in "o medo", pag. 303 da edição de dezembro de 1997 da assírio & alvim .


da pedra ao coração, outra vez, a ti to devo.obrigada, laranja, laranja. suspeito que nunca me farás escrever antes amar uma pedra, que devolve mais.


"envie de toi", biréli lagrène.

escrever o chão


desde que vi esta ilustração no babelia de sábado, que a associo à fotografia a preto e branco, que defrontei há meses, na galeria quadrado azul.

mas aqui, estas mãos entretecem o chão de um continente inteiro, não esperam quem virá de viagem (de perto ou de longe), como as mãos da penélope, que trazia vestido o emaranhado ordenado da sua espera, como se a espera lhe recobrisse o corpo.

aqui, a escrita também se tece, mas a teia que a escrita faz está do lado de fora, é chão que se pisa, caminho para longe, haja coragem.

há pouco, luísa costa gomes dizia que "um bom livro é o livro que me faz escrever". é verdade também comigo, os bons livros têm-me feito escrever, chorar, gritar madrugada alta contra laranjeiras já surdas, contra cadernos esgotados; arranham-me a pele por dentro, trazem-me acordada de noite e irrequieta de dia. é como se fossem todos livros de desassossego. quando encontrei ricardo reis, conclui isso, que quem quer sossego não abre livros. desde então, sempre que abro um livro, de algum forma, trago isso presente, é risco que aceito e procuro. mas depois fico assim, dias a fio, a digerir, a acomodar, a revolver.

lembro-me de ser míuda e passar na televisão uma propaganda que dizia "leia um livro e seja quem quiser." algumas vezes terá sido assim, lido o livro, foi como se tivesse vivido eu a história que nunca cumpriria do lado de fora (como com Madame Bovary, de Flaubert). noutras, a maior parte delas, as personagens foram umas vezes espelhos, outras prenúncios. daí o desassossego.mas não sei ser nem quero saber de ser de outra forma.


"pecados íntimos", de todd field.

19 março 2007

"eu hei-de amar uma pedra"


o sr. lobo aparecia no jornal do dia a seguir à atribuição do prémio camões, com a mesma fotografia de antes, em que uma fotografia sua lhe servira para esconder a cara, que então também não quisera mostrar.e nem então soubemos se a cara escondida seria parecida com a cara da sua fotografia,que lhe servia de máscara. é estranho, uma fotografia nossa ser a nossa própria mentira ou esconderijo. mente mais ainda esta fotografia hoje? ou está mais próxima da cara que ele tem?
e depois as fotografias no ipsilon, sobre os escritores fotografados pelo daniel mordzinski.
e as fotografias de joão onofre, no babelia do el país deste sábado, comprado a tempo, em que os coveiros dos cemitérios de lisboa apareciam em grupo, todos com óculos de sol idênticos, todos a sorrirem ao fotógrafo e também aos vivos que eles esperam,como se sorrissem aos que vão enterrar, desde que escondidos os olhos, sorri-se a toda a gente, deve ser por isso que se lança mão dos óculos de sol, pode-se rir com a boca e não rir com o olhar.
e a entrevista de philip roth no público, em que diz que não gostem que o fotografem e faz deliberadamente cara de mau. teria o jornal adivinhado que eu acabara de ler, meia hora antes, o livro que trazia morte para perto e a empurrava, no mesmo golpe, para longe, com uma energia (inesperada?) num animal moribundo? deposi de lido o livro, o frio cá dentro era tanto, que me quis enrolar no jornal, à falta do abraço.
depois dei por mim a desenhar as fotografias que faria para legendar as frases que trago sublinhadas nos livros que leio eque me revolvem por dentro, escritas em cadernos variados acumulados na mesa de cabeceira do lado esquerdo e livre da cama vasta ou a flutuar na minha cabeça (pousada na almofada há horas, ainda sem dormir e que esqueço antes de conseguir reunir forças para alcançar a luz, o papel e a caneta, rede de borboletas para quem quer aprisionar o que traz à solta dentro de si).
sonny stitt.pedra do cemitério das traseiras do norte shopping.o animal moribundo, de philip roth, edições d.quixote.rosa escura.

05 março 2007

cameleira florida

o que te digo é que as cameleiras já estão floridas, passei agora por elas sorrateiramente, como um gato que passa rente ao muro sem querer acordar o sol, como se elas dormissem e não quisera que deram pela minha passagem.virás este ano confiar-me a flor do ano passado?

estou na biblioteca do palácio de cristal, onde regresso tantas vezes e sempre me lembro de ti. como se, desde que chegaste à minha vida, se tivesse dissolvido a memória que tinha dos lugares antes de ti.e não é justo, nem com os lugares, nem contigo.nem comigo, adivinharei mais tarde.

oiço chavela vargas. aqui encontrei outra versão daquela música de que me apontaste um verso e descobri, num ápice, a letra toda.agora,com esta coisa da internet, por uma palavra só se descobre o verso todo, por uma linha se chega ao romance inteiro.já não andamos anos a fio a esperar encontrar de novo, o nome daquilo por que queríamos chamar.a noite do meu bem chama-se aqui la noche de mi amor. do meu bem ao meu amor vai um passo vasto- eu
soube-me teu bem,tua linda, mas nunca teu amor.não me trago triste por isso.

e depois a música traz um ar de choro, de comoção,que não tinha na outra versão que ouvi. é por isto que quem interpreta,também acrescenta. aqui, chavela vargas quer para dar, quer o mais bonito das coisas bonitas, para brindar a noite do seu amor, mas a forma como chora a letra faz antever que ficará à espera no cais, não fará diferença os enfeites que recolha para pousar no colo de quem quer bem.

não te darei notícia disto, aliás, é assim que tenho estado, calada, por escrever, por dizer : calei as páginas que sublinhei no babelia do el país de sábado, calei a luz que devorei na esplanada do adamastor voltado ao tejo, no chá da tarde, calei a lista de spas aqui ao alcance da mão, calei a poesia que li na viagem, calei o meu choro e a minha necessidade de colo quando saí de mais uma visita ao meu amigo maior. calei ainda a minha supresa por me rever ainda no into my arms, de nick cave, eu atéia, eu, assim,à espera, depois deste tempo todo, sapiente da impossibilidade do resultado, por todas as razões e mais algumas, as maiores, do coração.

aqui à volta há meninas que, à régua, desenham riscos, entre uma linha de texto e a outra. tenho quase vontade de lhes dizer que se deixarem a caneta colorida de lado, que se sentarem apenas a ler, ler, ler para frente, lerão mais e melhor. mas não me parece que me levassem a sério, se lho dissesse. estão ainda naquela fase em que sublinham segundo um secreto código de cores, como se as cores das pinceladas fizesse diferença séria para se lembrarem do seu teor.

censuro-as, mas ainda hoje fiz rir o arquitecto da reunião da tarde, quando lhe disse que texto que procurava ele e lera eu, estava no topo norte do texto, numa coluna à esquerda. sem nada a assinalá-lo, sabia de cor da geografia do seu lugar. com o tempo, fui descobrindo que importa não saber de cor as frases dos outros, mas sim saber, de coração, qual o caminho que retivemos no nosso percurso até elas. em milhares de páginas da rosa do mundo, sei onde estão os versos que te quero ainda ler, sem que tenha esquinado páginas ou lá deliberadamente esquecido bilhete de concerto ou fotografia recortada.

comigo, quanto mais vasto é o livro, menor é o risco de não encontrar aquilo a que se quer regressar. deve ser por isso que te entreguei tantos livros de esconder no bolso, com páginas esquinadas, ainda sem perceber por que julgo maior o risco de perda do recado num livro com menos páginas.


exposição de camélias, palácio do freixo, 10 a 12 de março.
50 anos de gravura, fundação cupertino de miranda, a partir de 10 de março.

ganhar fome de gente? ganhar lastro

no outro dia falavas da importância de ficares sozinho, para ganhares fome de gente, para voltares a sentir necessidade de ver, ouvir e abarcar quem geralmente te rodeia.

eu tenho sempre fome das pessoas de quem gosto. deve ser aquela sempre insatisfação faz de mim menina sôfrega. tenho sempre vontade de mais, tenho sempre vontade de ouvir mais, ler mais, de dar e receber mais.e não é porque o que recebo me deixe insatisfeita – é porque não me cansa, não me farta, não me entedia o que me dizem, o que me fazem ouvir.há pessoas que ouvia a vida toda, em silêncio ou aos berros, ao som da música ou do desfolhar das páginas, dos lençóis ou dos abraços. não preciso de ganhar distância física para ter depois saudades e vontade de recuperar a proximidade.

eu não tenho estado sozinha para ganhar fome de gente – tenho estado sozinha para ganhar lastro, como a broa do pão. para ganhar solidez, firmeza, chão, para ser outra que não aquela que tenho sido, para que os outros ganhem fome de mim. ser melhor pão, ser broa melhor. menos crua, com mais sabor.

eu tenho-me assim, para ver se cresço, para eu ser a única coisa que me faz verdadeiramente falta, para que nada me faltando se não eu, possas assim aproximares-te tu : que assim não terás medo que precise de ti, que assim não terás receio que precise do teu pão para matar minha fome. e poderei eu matar a tua? a broa de pão que se parte da esqeuina da mesa, de codêa rija, que protege o interior macio e que se esfarela na boca, a broa que se come quente, a sair do forno ou já com dias, com a marmelada escura ou esmiuçada no café. é essa broa que quero ser.


"a louca da casa", de rosa montero, edições asa.

02 março 2007

montanha

http://www.tsf.pt/online/radio/index.asp?id_artigo=TSF178227&pagina=Interior

há anos que oiço este senhor.hoje,já estava quase pronta para pôr o pé na rua, já tinha até tomado o chá quente ainda descalça no granito frio da varanda, quando ele começou a falar de um menino que se fez passar por menos menino, para ter idade bastante para subir àquela montanha (como o fiz eu, para entrar no cinema, tantas vezes, quando tive pressa em ver outras coisas, que as da nossa idade já me entediavam).

muitas vezes me fui sentar em frente ao mar ou subi à montanha, umas vezes cedo, outras tarde demais.il faut regarder le chemin, recordo a tradução que fiz quando contei a uma senhora francesa, com ar de menina, o que me dissera uma pastora em pitões das júnias, saída do meio da urze. sobe à montanha quem não tem o mar perto ou quem o quer sonhar, quem quer perder o medo, quem precisa de se sentir pequenino outra vez, ao tomar consciência da vastidão do mundo. ou quem quer medir a distância da sua viagem : irei desta montanha até à última que alcanço daqui.

há quanto tempo não subo sequer para cima de uma cadeira?, como naquele filme que nos rasgou a juventude a meio e nos pergunta,ainda hoje, quando poderemos dizer que our fearful trip is done.

é certo que é sempre menor o fôlego ao subir a ladeira, à medida que idade vai pesando.mas, se numa idade, se sobe o monte para se saber onde ser quer ir, noutra, se vai lá para se ter noção da vastidão do mundo por onde se andou. se subisses ao monte de que te falo comigo, parando em cada pedra, recuperando, devagar, o fôlego que a ambos nos falte, sei que te comoverias, lá em cima,tanto como eu. e se decidissemos não descer da montanha no fim do dia, saberíamos, por diferentes razões, que íamos deste lado de papo cheio.

e tu,vens daí?

hoje não acabo o dia sem subir a uma cadeira.talvez daí já se veja a patagónia.