08 março 2024

"arame farpado", dizia o meu Pai da minha letra. "nunca farei nada de ti", professor de caligrafia, frustado como poucas vezes o vi.

a minha Mãe fazia côro na censura, mas,depois, e ainda hoje, também na letra em si. ambas sabemos que a letra é sempre mais lenta do que estamos a pensar, do que estamos a querer reter do que se nos ocorre por dentro, espontaneamente, ou em reacção ao que nos entra pelos olhos adentro.

tenho centenas de cadernos escritos, com tudo o que importou, e que, certamente, importa agora pouco. mas passar da cabeça ao papel tem essa vantagem, esvaziar a cabeça, ocupar as mãos, e ganhar espaço e tempo para outras coisas vindouras.

há uns tempos (demasiado?) largos, um amigo que é desenha e escreve, dizia-me, quando me queixava da minha impossibilidade de ler as minhas próprias notas, que "escrever é desenhar", e que é importante desenhar-se coisa que se leia, com calma, sem sofreguidão. talvez tivesse razão. talvez devesse o meu Pai ter-me posto a desenhar, em vez de fazer uma letra que era a dele, a dos manuais, mas não a minha. e talvez por ter sido tão contrariada na escrita, tenha abandonado o desenho : quem tem uma letra assim não pode desenhar nada de jeito.

muitos anos mais tarde, um homem com quem me cruzei na faculdade, e que me passou ao lado, dizia-me "tens uma letra muito bonita. só pena não se conseguir ler". será que temos uma letra diferente para cada destinatário? que somos mais ou menos imperceptíveis conforme queremos ou não que nos leiam por dentro? que tememos que, pela letra, saibam como somos ou no que iremos dar, e por isso, instintivamente, nos fujam?

há uns meses retomei uma brincadeira antiga, para recuperar a plasticidade da capacidade de pensar, entorpecida pelo cansaço extremo, pelos desgostos, pelo tédio : escrever com a mão esquerda, escrever com ambas as mãos, numa quase sincronia, escrever em espelho, desenhar de olhos fechados. e depois de olhos abertos. e isto tudo, por causa de uma brincadeira com um rapazito que, aborrecido, esperava pela consulta da sala de espera da nossa oftalmologista em comum. dei-lhe umas folhinhas do meu caderno, deixei-lhe dois dos meus lápis. antes, falara-lhe de Eleanor Roosevelt, que terá dito "faz o que podes, onde estás, com o que tens", a pretexto de escrever o nome dele com as letras que estavam no quadro magnético onde brincara antes dele. "faltam letras, não consigo escrever o meu nome". entre números que serviram de letras, e outros expedientes, lá conseguiu escrever o nome todo dele. riu-se, dizendo "essa senhora de que falaste tinha razão". foi então que passamos para o papel, e lhe mostrei que ele podia fazer e não sabia. deixei-o entretido com a descoberta, e disse-lhe "desenha e escreve sempre, que há uma relação entre a tua cabeça, e a ponta dos teus dedos." e citando a mafalda de Quino, "nem imaginas o que cabe dentro de um lápis". vim embora, a sorrir-me. ainda me lembro da cara do ganapo. de vez em quando, quando regresso ao mesmo exercício, lembro-me dele, e pergunto-me se se lembrará de mim, aquela senhora de cabelo quase côr de farinha, que se ria e desenhava e escrevia, que nem deu pelo tempo passar. dizemos aos outros o que precisamos de ouvir. dizemos ao papel o que precisamos de ouvir duas vezes, e que nos liberta para o dia seguinte, para a vida vindoura.


a Garota Não canta "Dilúvio".