dos jardins como persistências
ontem à noite, já madrugada, o rapaz do café Bop virou-se
para mim e disse, como só os rapazes da sua idade sabem dizer : "oiça lá,
aquilo que me pediu para pôr aqui a tocar e que eu não tenho, mas vou ter, é
brutal, brutal, mesmo brutal. estive duas horas e meia da folga a ouvir, nem
dei pelo tempo passar." sorri-me, sorri-lhe. (é por aqui que vamos : pela
repartilha do que nos endossam, até que se democratize, que não se rompe, não
se gasta, não se banaliza). ele ouviu duas horas, eu ouvi umas vinte. passei a
trazer a música encostada quase sem distância, aos ouvidos, a passar quase
directamente da caixa de música para dentro da cabeça, para não se dissipar no
ar e no barulho, para chegar mais inteira, a ver se assim calo a voz que não se
cala dentro da minha cabeça, reclamando pelo que se adia, se empilha e não se
faz sozinho; é um expediente para poder fazer a cabeça escrever as coisas do
dia a dia, pela noite dentro, quando já não há nenhuma luz acesa em volta além
da minha. há dias, parada no semáforo da álvares cabral, quase na praça da
república, desprezei a luz verde que chegou, e tirei esta chapa : porque me
lembrava o jacarandá que foi cortado do arranque da rua da bandeirinha; porque
me lembrava um chão de combate que a música de kamasi washington traz consigo;
porque quando as casas ardem, e se arruínam - como a da alliance française que
ali estava, que me fez chorar quando vi o rescaldo do incêndio, que levou os
interiores de filme, com ecos, cheiro a cera e vidros pintados e os livros - ,
são os jardins que, descuidados, entregues a si mesmos, se tornam excessivos e
transbordam de si, e fazem desabar, no passeio, nos muros, nas ruínas, as
flores assim. os jardins é que são os lugares persistentes, as memórias perenes
quando as casas e as pessoas se vão. o condutor do carro atrás do meu teve a
mesma paciência silenciosa que outro tivera, há uns anos atrás, quando fiquei
pasmada a olhar o jacarandá florido da rua da bandeirinha. estariam também
comovidos com as árvores que regressam apesar do tempo, ou precisamente por
causa dele, e nos mostram a passagem do nosso?
https://youtu.be/rtW1S5EbHgU