08 março 2024

"arame farpado", dizia o meu Pai da minha letra. "nunca farei nada de ti", professor de caligrafia, frustado como poucas vezes o vi.

a minha Mãe fazia côro na censura, mas,depois, e ainda hoje, também na letra em si. ambas sabemos que a letra é sempre mais lenta do que estamos a pensar, do que estamos a querer reter do que se nos ocorre por dentro, espontaneamente, ou em reacção ao que nos entra pelos olhos adentro.

tenho centenas de cadernos escritos, com tudo o que importou, e que, certamente, importa agora pouco. mas passar da cabeça ao papel tem essa vantagem, esvaziar a cabeça, ocupar as mãos, e ganhar espaço e tempo para outras coisas vindouras.

há uns tempos (demasiado?) largos, um amigo que é desenha e escreve, dizia-me, quando me queixava da minha impossibilidade de ler as minhas próprias notas, que "escrever é desenhar", e que é importante desenhar-se coisa que se leia, com calma, sem sofreguidão. talvez tivesse razão. talvez devesse o meu Pai ter-me posto a desenhar, em vez de fazer uma letra que era a dele, a dos manuais, mas não a minha. e talvez por ter sido tão contrariada na escrita, tenha abandonado o desenho : quem tem uma letra assim não pode desenhar nada de jeito.

muitos anos mais tarde, um homem com quem me cruzei na faculdade, e que me passou ao lado, dizia-me "tens uma letra muito bonita. só pena não se conseguir ler". será que temos uma letra diferente para cada destinatário? que somos mais ou menos imperceptíveis conforme queremos ou não que nos leiam por dentro? que tememos que, pela letra, saibam como somos ou no que iremos dar, e por isso, instintivamente, nos fujam?

há uns meses retomei uma brincadeira antiga, para recuperar a plasticidade da capacidade de pensar, entorpecida pelo cansaço extremo, pelos desgostos, pelo tédio : escrever com a mão esquerda, escrever com ambas as mãos, numa quase sincronia, escrever em espelho, desenhar de olhos fechados. e depois de olhos abertos. e isto tudo, por causa de uma brincadeira com um rapazito que, aborrecido, esperava pela consulta da sala de espera da nossa oftalmologista em comum. dei-lhe umas folhinhas do meu caderno, deixei-lhe dois dos meus lápis. antes, falara-lhe de Eleanor Roosevelt, que terá dito "faz o que podes, onde estás, com o que tens", a pretexto de escrever o nome dele com as letras que estavam no quadro magnético onde brincara antes dele. "faltam letras, não consigo escrever o meu nome". entre números que serviram de letras, e outros expedientes, lá conseguiu escrever o nome todo dele. riu-se, dizendo "essa senhora de que falaste tinha razão". foi então que passamos para o papel, e lhe mostrei que ele podia fazer e não sabia. deixei-o entretido com a descoberta, e disse-lhe "desenha e escreve sempre, que há uma relação entre a tua cabeça, e a ponta dos teus dedos." e citando a mafalda de Quino, "nem imaginas o que cabe dentro de um lápis". vim embora, a sorrir-me. ainda me lembro da cara do ganapo. de vez em quando, quando regresso ao mesmo exercício, lembro-me dele, e pergunto-me se se lembrará de mim, aquela senhora de cabelo quase côr de farinha, que se ria e desenhava e escrevia, que nem deu pelo tempo passar. dizemos aos outros o que precisamos de ouvir. dizemos ao papel o que precisamos de ouvir duas vezes, e que nos liberta para o dia seguinte, para a vida vindoura.


a Garota Não canta "Dilúvio".

21 setembro 2022

respigado dos arquivos:

atravessei, quase em branco, a madrugada da passada sexta-feira, tal como acontecera em 2011, no dia da morte do meu pai. nesse dia, fui buscá-lo ao hospital de santo antónio, como combinado: aguardara toda a noite pela nossa chegada, para que conseguíssemos levá-lo a morrer em casa. que casa? a minha. no domingo anterior, perguntou-me “quanto tempo tenho?”, e respondi-lhe com outra pergunta “queres mesmo saber?”. firme, disse que sim, e acrescentou “eu tenho coisas para tratar e tu também”. quase em lágrimas, admiti-lhe “pode precipitar-se a qualquer momento”. respirou a custo, sorriu-se, e disse “sendo assim, começa a escrever e faz uma lista do que tens para aviar. e vai-me cortar esse cabelo. e põe um fato e uns saltos no meu funeral. e se mais ninguém disser mais nada, não me deixes ir sem dizeres algumas palavras sobre o teu velho.” cortei o cabelo rente no dia seguinte, ida e volta quase menos de uma hora; terei o fato do armário, que já nem para os julgamentos o punha; e deixei-o a arejar, pendurado no lado de fora do roupeiro; e sim, foi a última vez que o vesti, e a última vez que pus uns saltos altos. lembrava-me de ser ganapa e de ver o meu pai no funeral do seu, a única vez que o vira, desde que eu nascera e tinha memória, de fato e de gravata. e a chorar. fiz-lhe o elogio fúnebre e pedi um aplauso para a sua vida.

naquela tarde de domingo, depois de um banho inesperado, com direito a barba e after-shave, disse-me, comovido, sorrindo, e agradecendo, o que lhe dissera uma vez o seu pai: “estou como quem rega uma alface”. naquela tarde, fora claro : o meu pai não queria que a sua aurora de todas as manhãs associasse a casa de ambos ao seu fim. “se te custar que eu morra na tua casa, tu passas a tua casa a patacos e procuras outra; afinal, estás ali há pouco tempo; se for lá em nossa casa, a tua mãe vai associar a nossa casa também ao meu fim e, certamente, vai custar-lhe ainda mais lá ficar; e eu sinto-me em casa na tua casa. pode ser? desculpa lá, rapariga. e já me despedi da nossa casa quando vim embora, já sabia que não voltava lá.” disse-lhe que sim, sem hesitar. ainda não vendi a minha casa, talvez precisamente por isso - as casas, não sendo hoje o lugar onde se nasce, podem ser o lugar onde se morre, além de serem o lugar onde se canta, se ri, se chora, se trabalha, se cozinha e se põe “ a mesa ao redor do coração”, onde se trabalha, se lê, se desenha e se escreve. talvez tenham sido os livros da agustina a prepararem-me (também) para isto.

no hospital de santo antónio nada lhe faltou, fora uma coisa ou outra que me fez reclamar, muitas vezes até contra a sua vontade, e muitas vezes em nome de outros doentes, que não tinham quem falasse por eles. “enquanto tiveres papel e lápis, escreve, reclama, nunca se sabe o que pode uma carta que sai das nossas mãos e chega a quem deve.” escrevi muito na altura, escrevo ainda hoje.

para poder morrer em casa, com os seus, toda a logística (cama, oxigénio, enfermeiro, morfina como tivera desde cedo e em dose bastante para ir serenamente e sem dor) foi preparada com recurso aos cuidados privados, pagos por nós e a comparticipar pelo sams. o sns não dispunha desta solução e fiquei a pensar no que seria quando fosse a minha vez, perto ou longe que viesse. e o que seria de todos aqueles que, estando hospitalizados longe de casa, e sem este apoio de rectaguarda, se viram impedidos de irem morrer ao lugar que escolheram.

reli ao meu pai algumas das coisas dos dias anteriores, entre elas, daniel faria, que tantas vezes evoquei, antes e depois : “cada um de nós é um lugar para os outros.” de repente, deixou de falar, mas apertava a mão para sim, duas para não (dizer não implica sempre maior convicção?, um gesto mais inequívoco?). a dada altura, chamei toda a gente, que o gesto se ia, o respirar ganhava descompasso, e o meu pai deixou-se ir embora, cansado de tanta luta, rodeado pelos seus.

hoje lia javier marías no comboio da manhã. o livro leva quase 400 páginas e pouco se passou na intriga e, ao mesmo tempo, já questionei quase toda a minha vida. não se passa quase nada no livro, e faz com que se passe tudo nas nossas mãos. abre-se aquele livro, e abre-se um espelho de aumento, fitamo-nos a nós (quem quer sossego não abre livros). fala sobre o direito ao silêncio dos arguidos, sobre o efeito da versão contada por quem não se remete ao silêncio e da irrelevância dessa versão; fala sobre a alegada inevitabilidade da quebra de confiança e sobre a febre que assoma quando nos desferem essa lança; fala sobre o que é o efeito semelhante ao da morte o pedir-se, em tempo de guerra, que ninguém fale, pelo risco que pode importar a “careless talk” para o sucesso do combate – e assim um governo impõe aos vivos o que a morte impõe aos mortos, por condenar aqueles ao silêncio destes. fala também do lugar onde se morre, e da voz que paira e fala desse lugar, como se o conseguisse ver de fora, quando já não está nele.

morrer-nos gente é talvez muito isso : deixarmos de ter quem conteste o que dizemos, em voz alta ou só dentro da cabeça, quando acordados, ou do lado do dentro do sonho, quando dormidos (não tenho a certeza que seja ainda dentro da cabeça). alguém ser nosso lugar é estar ali para nos responder às melhores tiradas e aos maiores disparates – um lugar sempre nos responde.

nos últimos anos, morreu-me muita gente, mais que aquela que eu julgava ser capaz de suportar. este fim-de-semana, ao contrário do que aconteceu nos anos anteriores, não fui à praia da apúlia no dia da morte do meu pai -  fui antes para vaiamonte. sentei-me no jardim da casa, ajudei a plantar coisas para as ver crescer; cozinhei coisas boas, bebi uns tintos, derreti-me dentro de uns doces conventuais; e dormi, entreguei-me à sorna; procurei rir mais, melhor, duradouramente – a evocação de quem não está mais no mesmo lugar não tem de ser sempre pela ausência definitiva, antes pode ir-se buscar o tempo da presença duradoura. na ida e na volta, e enquanto lá estive, pelo lado de dentro da cabeça, desfiei páginas inteiras que trago escritas por dentro. àquela casa o meu pai nunca foi – mas livros seus e meus, o sofá que veio da casa da apúlia, a forma de fitar as árvores do jardim e o gesto de colher e comer as laranjas, ainda quentes - são tudo da sua pertença, tudo marca sua. levámos os nossos, afinal, aos lugares onde já não podem ir, quando vamos esses lugares e os evocamos nestas formas de agir.

o meu pai ensinou-me várias coisas, a maior parte delas sem o saber: a ir concentrada na estrada que parece não acabar nunca, antecipando riscos quase imperscrutáveis, mesmo estando absorta; a conduzir mecanicamente horas a fio, sem cansaço aparente, quase como se não estivesse dentro do carro, mas alhures, dentro da cabeça ou do coração ou de um livro (o que vai dar ao mesmo); a ser capaz de estar quieta a pasmar, olhando detidamente para a paisagem, tomando consciência de fazer assim parte dela, e deter-me em coisas que me assaltam horas depois de as ter visto e a evoca-las inesperadamente; a manter a espinha direita como o fio de prumo que trouxe do mercado de estremoz; a ter muitas pontas soltas numa história e a cerzi-las como num livro policial, quando ninguém mais esperava que se descobrisse a urdidura perfeita; a ser paciente nessa demanda, e tendo sempre mais coragem que medo.

naquela madrugada, como nos filmes que o meu pai sempre me deixou ver antes da idade aconselhada, deslindáramos uma charada, e a viagem do fim-de-semana fora precisamente a recompensa pela revelação alcançada – não estará tudo perdido quando uma praça de gente madura se põe a pensar. na mala que trago a tiracolo, passei a trazer uma régua metálica, muito bonita, de cálculo de munições necessárias para um tiro certeiro. será um objecto talvez demasiado raro para o trazer sempre comigo, mas servirá para pensar detidamente antes de qualquer gesto de arremesso, e depois, confiante, disparar sem hesitação.

28 dezembro 2020

da importância dos cacos

 ttps://www.youtube.com/watch?v=FV4hq_gdNhQ


da importância dos cacos em que ficam algumas coisas e alguns objectos e alguns corações : o ver-se o interior de um vaso ou de bule porque ele se desfez em cacos é a vantagem que traz a queda catastrófica dos graves. nunca teríamos conhecido o reverso do verso sem essa espectacular destruição. e algumas coisas revelam-se também inesperadamente bonitas por dentro, até mais que por fora.
pratos, copos, quadros, livros, projectos, decisões, processos, o que me tem caído ao chão, por falta de mão segura que os defenda, por contradições e contratempos que parecem desmultiplicar-se por coisas que acontecem na nossa vida e na dos nossos, por falta de espinha dos que mandam, ficando-se a coragem ímpar, nas mãos dos sérios, dos bons, muito poucos.
esta senhora desenha, molda, faz álbuns com recortes, e suspeito que também escreverá cartas. bebe chá e sorri-se, sorri-nos. lembrei-me de "O elogio da sombra", de Tanizaki, talvez ou apesar da sua casa luminosa.
pensei nos cacos, e nos japoneses que os selam com ouro, porque o que há de novo nos cacos somados é maior que o que era antes inteiro. é tempo, releitura e persistência.
ocorreu-me ainda aquela senhora que planta árvores depois dos 80 anos, porque ainda as quer ver crescer, e lembrei-me de como se assemelha à mãe que trago em casa, e que levarei para o seu jardim daqui a nada.
saibamos rir quando a vida se faz em cacos, num estalhardaço que nos denuncia, e pensemos que não está tudo perdido, e que até pode ser o melhor ponto de partida para tanta coisa boa.

29 maio 2019

amor e labuta

20 setembro 2018

vozes na minha cabeça




 "there is a voice in my head and it is not me".
lobo antunes falava do que a morte de cardoso pires fora para si: uma voz que deixa de atender o telefone do outro lado. não tenho melhor definição que esta. mas, ao mesmo tempo, sinto que a voz muda apenas do ouvido onde encostamos o auricular do telefone, para dentro da cabeça, e anda por ali a vaguear, ora silente, ora sonora.
durante anos, depois de vir embora de lisboa, tinha um amigo - antigo chefe -, que me ligava quase todos os dias pelas cinco da tarde, e me perguntava: "que fazes tu, rapariga? muito te dispersas, mas é nisso que tens também a tua virtude, que depois ligas isso tudo como parecia não ser possível. que leste tu esta manhã? e que escreves tu esta tarde?". (demorei anos a perceber que tinha razão este método e nesta pergunta, e chego lá agora, esperando que a tempo). essa voz calou-se em 2007. mas é raro o dia em que, na minha cabeça, pela hora do chá que nunca tomamos, não oiça essa voz, mais cavernosa nuns dias de mais fumo, mais translúcida como os seus olhos noutros dias luminosos. ficaram-me as suas dedicatórias nos livros que me foi dando, a pretexto de tudo e de nada. num deles, “a divina comédia”, de dante, escrevera “já que vais parar ao inferno, é da mais elementar prudência que recolhas informação sobre ele”. (à conta disto, subi a ponte da arrábida : pela importância de se ver um rio de cima, pela importância de se ver, de frente, o que ali vai e ali não fica. à conta disto, foi sempre pelos livros que comecei toda e qualquer aventura). ficaram-lhe as cartas que lhe escrevi, de 2001 até à sua falta – uma fotocópia de uma tira do calvin, uma passagem de manuel antónio pina, um postal de paris, mais de duas dezenas de envelopes, que vi perfilados numa bonita caixa de madeira, no dia em que comemos tangerinas de folhinha, quando o visitei, e descascou uma tangerina, como não fazia há 40 anos, e depois esfregou as mãos nas cascas, e levou-as ao cabelo, “não haverá hoje mulher que me resista, que tenho em mim o melhor perfume do campo.” vi os envelopes religiosamente abertos, ordenados por data, e perante o meu espanto, disse-me, a sorrir, “são como que presentes que desembrulho, releio e volto a guardar; amiga, reler-te as cartas é uma forma de ter a tua visita quando não a tenho.”
desde que fui estudar para coimbra, em 1993, melhor ou pior, mais brevemente ou não, sempre falei todos os dias com os meus pais, hábito que se manteve quando me deparei, na cidade do porto, em 1999, com um estágio de advocacia que iria mostrar-se uma prova de fogo, premonitória da prática que conheci desde então. o meu pai sempre me perguntava, umas vezes quase a medo, noutras cheio de ânimo, “como vai isso, camarada?”, mesmo sabendo a resposta, mesmo antecipando uma mentira piedosa para ambos. respondia que ia andando, repetia que ia sempre, que à força de tanto se repetir, talvez se passasse a cumprir. quase dois anos depois, quando quis ir para lisboa estudar novamente, num projecto-piloto que o meu pai que vira no jornal, mandou-me embora e disse-me que não olhasse para trás; quando me convidaram, poucos meses mais tarde, para ir para lá trabalhar, disse-me o mesmo: “primeiro dizemos que sim, depois logo se vê como; se não gostares, vens embora, que não tens de ficar contrariada em lado nenhum”; ia por três meses, fiquei um ano e meio, aprendendo a pensar como depois nunca mais, acumulando dezenas de livros lidos, milhares de quilómetros de comboio e de carro, e sempre encontrando umas horas, em barcelos ou no porto, para um almoço, um jantar, um café, um porto, um tinto, uma troca de fotografias, livros, cigarrilhas e histórias de aventuras; quando, anos mais tarde, me indicaram para uma entrevista a que fui de fato, sim, mas de sapatilhas vermelhas e de espinha direita, disse-me apenas: “não sei se te darás nisso, que te vão pedir para escreveres o contrário do que pensas. mas poderás sempre voltar para casa, se tudo correr mal, que haverá sempre uma sopa, um tinto e qualquer outra coisa.” (quem me indicou para a entrevista então não o faria agora, e se o meu pai soubesse o que andei a fazer, para que isto assim seja, talvez fosse maior o orgulho que a censura); quando me atirei, de cabeça e coração, para um doutoramento em arquitectura, em 2010, o meu pai leu a carta da candidatura, na sala de espera de uma sessão de radioterapia, e disse-me “ eu aceitava-te. mas terás de correr muito, ler muito, escrever muito. mas isso para ti não será um problema. bem, talvez o correr.” e gargalhou, como só ele, como só eu.
mesmo nos seus piores dias, o meu pai continuava a perguntar “como vai isso, camarada?”. devolvia-lhe a pergunta, muitas vezes sem lhe responder, e muitas vezes nos mentimos ambos, com todos os dentes que tínhamos na boca, sabendo disso, mas sabendo que nos repetíamos a pergunta, santo e senha, como forma de fazer de conta que não se passava nada, que não tinha sido nada, que os joelhos esfolados, as mãos abertas, o coração rasgado em pedaços como papel, a cabeça em cacos, a alma em tirinhas, os nervos em franja, a saúde numa rodilha, não era nada, ninguém vira senão nós, tudo se leva, tudo passa, “como vai isso, camarada?”, e de repente, parece que é a pergunta que traz normalidade a tudo o que não a tem.
o meu pai foi embora em maio de 2011 e, eu continuo, todos os dias, quando ligo para casa, logo pela manhã ou depois do jantar, a esperar que, além da mãe, o pai atenda o telefone com aquela voz de corpo diplomático, mordomo de filme policial, e pai de todos os dias, “faz favor?”, “como vai isso, camarada?”. respondo secretamente à pergunta que me faço, por sua vez, fazendo franca batota. e prossigo, como se não me custasse ainda.
desarrumo muitas vezes livros das estantes , só para ler as dedicatórias que o meu pai me escreveu nos livros, únicas cartas que me deixou : que escrevera demasiado na juventude, especialmente nos 50 meses de tropa, para se entreter, e que não era preciso escrever-se aos filhos, se lhes dera livros, e se sentara à mesa com eles. eu escrevi muitas vezes aos meus pais, mas nunca tive resposta (depois, anos mais tarde, outros se juntaram à lista dos não respondentes). nas dedicatórias dos livros, dava conselhos, fazia trocadilhos com os títulos dos livros, escrevia de forma inclinada, muitas vezes em letra de imprensa, como se não tivesse sido professor de caligrafia (e como se eu não fosse o seu pior caso perdido nessa questão). herdei-lhe, ainda em vida, esse hábito, e quando lhe dava livros (e foram muitos, nunca conseguindo igualar os que recebi), escrevia a dedicatória muitas vezes, ainda de pé, ao balcão da livraria, então como hoje, e depois tinha de traduzir-lhe o arame farpado, como lhe chamava. colava um papel com a tradução ao lado da dedicatória, para me envergonhar. mas eu não tinha então a vergonha que hoje continuo a não ter.
no dia da morte do meu pai, chorou também um amigo meu que nunca o conhecera pessoalmente, tendo apenas falado ao telefone, apresentando-se cerimoniosamente, e fazendo de mim pombo correio para troca de garrafas e de simpatias. eram da mesma idade, leram os mesmos livros, gostavam do mesmo tinto, perderam-se ambos da vida que gostavam de ter tido e do que nela gostavam de ter sido (o meu pai médico, o meu amigo arnaut diplomata), e ambos sabiam que me esperaria o mesmo, se não os ouvisse a tempo. lutavam contra a repetição da história, e pelo regresso do sonho lindo que acabou, ao procurarem educar a geração seguinte.
telefonava ao meu amigo arnaut e este respondia-me, umas vezes alegre, noutras arrasado, “estou sim? ó minha amiga, como andas?”. conversávamos horas a fio, umas vezes, ao telefone, outras, quando o visitava em lisboa. com a passagem do tempo, fui tendo a capacidade de me zangar, de me revoltar, de discordar – umas vezes, ria-se, que fizera de propósito, só para me ouvir; noutras, amuava semanas, meses, mas sempre tomava eu a iniciativa de lhe voltar a falar, porque é assim que se deve ser com os amigos, especialmente os velhos. e fazia-o mandando-lhe um correio – uma carta, um postal, um livro, uma caixa de música – era a bandeira da paz que acenava, e educadamente, respondia a agradecer. ambos fazíamos de conta que não tínhamos perdido tempo aborrecido, mas ambos tínhamos noção, de umas vezes para as outras, que os tempos de guerra tinham de se encurtar, que podíamos ter menos tempo pela frente do que julgáramos.
também me dera muitos livros, e depois uma casa onde os guardar, e onde me guardar a mim. dedicatórias não as escrevia nos livros, mas transcrevia passagens que me queria sublinhar, numa caligrafia peculiar, em esferográfica preta, em papel almaço de 25 linhas, e
mandava-mas pelo correio : uma de peréc sobre a forma de regular a vida, e outra sobre o ser provável passarem por cima de nós, quando somos oposição ao que pretende perdurar. tenho-as em lugares onde me confronte com elas, para medir a distância que trago de as falhar ou de as cumprir, para servirem de alerta. esta voz calou-se este ano para os outros, mas ressoou, na minha cabeça, este verão, na brisa da tarde, ao sul, entre livros, tintos e árvores plantadas há poucos meses.
as decisões que tinha para tomar - calar ou falar, ir ou ficar, persistir ou soçobrar, eram sérias, quase sempre irreversíveis, e oiço-me a perguntar a quem não me responde a não ser dentro da cabeça, ou fumando sempre, fitando o tejo, ou segurando entre os dedos a esferográfica das palavras cruzadas ou o papel do pacote do café, olhando o pessegueiro bravo florido no quintal, ou interrompendo a frase para beber um gole de qualquer coisa, detendo-se na reprodução do quadro de magritte na parede.
olhando-os aos três, ressaltam as diferenças: cargos de poder ou com carreiras monótonas suportadas apenas para levar a vida; muitos filhos ou sem nenhum; acções políticas empenhadas (clara ou clandestinamente) ou pequenos actos com grandes consequências (como ensinar soldados a ler e a escrever). mas ressaltam também as semelhanças : centenas de livros lidos e outros tantas apenas debicados ou adiados (que seriam estas três bibliotecas reunidas?), uma grande paixão pelo alentejo, e grandes amores e desamores e amizades nas suas vidas, e abraços apertados nas chegadas e nas partidas, com direito a festas no cabelo, gestos de ternura, e um brilho nos olhos, de riso ou de comoção.
“são de nada as tempestades”, havendo estas vozes dentro da cabeça, umas vezes quase falando umas com as outras (como se tivesse sido possível tê-los, algures no tempo, sentado todos à mesma mesa), outras vezes quase falando comigo. não respondem a perguntas novas, só repetem o que já disseram, mas é então que regressa aquele verso de manoel de barros : “repetir, repetir, repetir até soar diferente.” talvez soe, talvez sirva, talvez estas vozes, que aparentemente se calaram do lado de fora, falando hoje do lado de dentro, ressoem, em parte, na minha voz, e talvez assim não se tenham perdido para sempre, e talvez assim não me perca eu.

13 julho 2018

dos jardins como persistências





ontem à noite, já madrugada, o rapaz do café Bop virou-se para mim e disse, como só os rapazes da sua idade sabem dizer : "oiça lá, aquilo que me pediu para pôr aqui a tocar e que eu não tenho, mas vou ter, é brutal, brutal, mesmo brutal. estive duas horas e meia da folga a ouvir, nem dei pelo tempo passar." sorri-me, sorri-lhe. (é por aqui que vamos : pela repartilha do que nos endossam, até que se democratize, que não se rompe, não se gasta, não se banaliza). ele ouviu duas horas, eu ouvi umas vinte. passei a trazer a música encostada quase sem distância, aos ouvidos, a passar quase directamente da caixa de música para dentro da cabeça, para não se dissipar no ar e no barulho, para chegar mais inteira, a ver se assim calo a voz que não se cala dentro da minha cabeça, reclamando pelo que se adia, se empilha e não se faz sozinho; é um expediente para poder fazer a cabeça escrever as coisas do dia a dia, pela noite dentro, quando já não há nenhuma luz acesa em volta além da minha. há dias, parada no semáforo da álvares cabral, quase na praça da república, desprezei a luz verde que chegou, e tirei esta chapa : porque me lembrava o jacarandá que foi cortado do arranque da rua da bandeirinha; porque me lembrava um chão de combate que a música de kamasi washington traz consigo; porque quando as casas ardem, e se arruínam - como a da alliance française que ali estava, que me fez chorar quando vi o rescaldo do incêndio, que levou os interiores de filme, com ecos, cheiro a cera e vidros pintados e os livros - , são os jardins que, descuidados, entregues a si mesmos, se tornam excessivos e transbordam de si, e fazem desabar, no passeio, nos muros, nas ruínas, as flores assim. os jardins é que são os lugares persistentes, as memórias perenes quando as casas e as pessoas se vão. o condutor do carro atrás do meu teve a mesma paciência silenciosa que outro tivera, há uns anos atrás, quando fiquei pasmada a olhar o jacarandá florido da rua da bandeirinha. estariam também comovidos com as árvores que regressam apesar do tempo, ou precisamente por causa dele, e nos mostram a passagem do nosso?


https://youtu.be/rtW1S5EbHgU

29 maio 2018

alma grande


atravessei, quase em branco, a madrugada da passada sexta-feira, tal como acontecera em 2011, no dia da morte do meu Pai. nesse dia, fui buscá-lo ao hospital de santo antónio, como combinado: aguardara toda a noite pela nossa chegada, para que conseguíssemos levá-lo a morrer em casa. que casa? a minha.
no domingo anterior, perguntou-me “quanto tempo tenho?”, e respondi-lhe com outra pergunta “queres mesmo saber?”. firme, disse que sim, e acrescentou “eu tenho coisas para tratar e tu também”. quase em lágrimas, admiti-lhe “pode precipitar-se a qualquer momento”. respirou a custo, sorriu-se, e disse “sendo assim, começa a escrever e faz uma lista do que tens para aviar. e vai-me cortar esse cabelo. e põe um fato e uns saltos no meu funeral. e se mais ninguém disser mais nada, não me deixes ir sem dizeres algumas palavras sobre o teu velho.” cortei o cabelo rente no dia seguinte, ida e volta quase menos de uma hora; terei o fato do armário, que já nem para os julgamentos o punha; e deixei-o a arejar, pendurado no lado de fora do roupeiro; e sim, foi a última vez que o vesti, e a última vez que pus uns saltos altos. lembrava-me de ser ganapa e de ver o meu Pai no funeral do seu, a única vez que o vira, desde que eu nascera e tinha memória, de fato e de gravata. e a chorar. fiz-lhe o elogio fúnebre e pedi um aplauso para a sua vida.
naquela tarde de domingo, depois de um banho inesperado, com direito a barba e after-shave, disse-me, comovido, sorrindo, e agradecendo, o que lhe dissera uma vez o seu Pai: “estou como quem rega uma alface”. naquela tarde, fora claro : o meu Pai não queria que a sua Aurora de todas as manhãs associasse a casa de ambos ao seu fim. “se te custar que eu morra na tua casa, tu passas a tua casa a patacos e procuras outra; afinal, estás ali há pouco tempo; se for lá em nossa casa, a tua Mãe vai associar a nossa casa também ao meu fim e, certamente, vai custar-lhe ainda mais lá ficar; e eu sinto-me em casa na tua casa. pode ser? desculpa lá, rapariga. e já me despedi da nossa casa quando vim embora, já sabia que não voltava lá.” disse-lhe que sim, sem hesitar. ainda não vendi a minha casa, talvez precisamente por isso - as casas, não sendo hoje o lugar onde se nasce, podem ser o lugar onde se morre, além de serem o lugar onde se canta, se ri, se chora, se trabalha, se cozinha e se põe “ a mesa ao redor do coração”, onde se trabalha, se lê, se desenha e se escreve. talvez tenham sido os livros da agustina a prepararem-me (também) para isto.
no hospital de santo antónio nada lhe faltou, fora uma coisa ou outra que me fez reclamar, muitas vezes até contra a sua vontade, e muitas vezes em nome de outros doentes, que não tinham quem falasse por eles. “enquanto tiveres papel e lápis, escreve, reclama, nunca se sabe o que pode uma carta que sai das das nossas mãos e chega a quem deve.” escrevi muito na altura, escrevo ainda hoje.
para poder morrer em casa, com os seus, toda a logística - cama, oxigénio, enfermeiro, morfina como tivera desde cedo e em dose bastante para ir serenamente e sem dor- foi preparada com recurso aos cuidados privados, pagos por nós e a comparticipar pelo sams. o sns não dispunha desta solução e fiquei a pensar no que seria quando fosse a minha vez, perto ou longe que viesse. e o que seria de todos aqueles que, estando hospitalizados longe de casa, e sem este apoio de rectaguarda, se viram impedidos de irem morrer ao lugar que escolheram.
reli ao meu Pai algumas das coisas dos dias anteriores, entre elas, Daniel Faria, que tantas vezes evoquei, antes e depois : “cada um de nós é um lugar para os outros.” de repente, deixou de falar, mas apertava a mão para sim, duas para não (dizer não implica sempre maior convicção?, um gesto mais inequívoco?). a dada altura, chamei toda a gente, que o gesto se ia, o respirar ganhava descompasso, e o meu pai deixou-se ir embora, cansado de tanta luta, rodeado pelos seus.
hoje lia javier marías no comboio da manhã. o livro leva quase 400 páginas, e pouco se passou na intriga e, ao mesmo tempo, já questionei quase toda a minha vida. não se passa quase nada no livro, e faz com que se passe tudo nas nossas mãos. abre-se aquele livro, e abre-se um espelho de aumento, fitamo-nos a nós (quem quer sossego não abre livros). fala sobre o direito ao silêncio dos arguidos, sobre o efeito da versão contada por quem não se remete ao silêncio e da irrelevância dessa versão; fala sobre a alegada inevitabilidade da quebra de confiança e sobre a febre que assoma quando nos desferem essa lança; fala sobre o que é o efeito semelhante ao da morte o pedir-se, em tempo de guerra, que ninguém fale, pelo risco que pode importar a “careless talk” para o sucesso do combate – e assim um governo impõe aos vivos o que a morte impõe aos mortos, por condenar aqueles ao silêncio destes. fala também do lugar onde se morre, e da voz que paira e fala desse lugar, como se o conseguisse ver de fora, quando já não está nele.
morrer-nos gente é talvez muito isso : deixarmos de ter quem conteste o que dizemos, em voz alta ou só dentro da cabeça, quando acordados, ou do lado do dentro do sonho, quando dormidos (não tenho a certeza que seja ainda dentro da cabeça). alguém ser nosso lugar é estar ali para nos responder às melhores tiradas e aos maiores disparates – um lugar sempre nos responde.
nos últimos anos, morreu-me muita gente, mais que aquela que eu julgava ser capaz de suportar. este fim-de-semana, ao contrário do que aconteceu nos anos anteriores, não fui à praia da apúlia no dia da morte do meu pai - fui antes para vaiamonte. sentei-me no jardim da casa, ajudei a plantar coisas para as ver crescer; cozinhei coisas boas, bebi uns tintos, derreti-me dentro de uns doces conventuais; e dormi, entreguei-me à sorna; procurei rir mais, melhor, duradouramente – a evocação de quem não está mais no mesmo lugar não tem de ser sempre pela ausência definitiva, antes pode ir-se buscar o tempo da presença duradoura. na ida e na volta, e enquanto lá estive, pelo lado de dentro da cabeça, desfiei páginas inteiras que trago escritas por dentro. àquela casa o meu pai nunca foi – mas livros seus e meus, o sofá que veio da casa da apúlia, a forma de fitar as árvores do jardim e o gesto de colher e comer as laranjas, ainda quentes - são tudo da sua pertença, tudo marca sua. levamos os nossos, afinal, aos lugares onde já não podem ir, quando vamos esses lugares e os evocamos nestas formas de agir.
o meu pai ensinou-me várias coisas, a maior parte delas sem o saber: a ir concentrada na estrada que parece não acabar nunca, antecipando riscos quase imperscrutáveis, mesmo estando absorta; a conduzir mecanicamente horas a fio, sem cansaço aparente, quase como se não estivesse dentro do carro, mas alhures, dentro da cabeça ou do coração ou de um livro (o que vai dar ao mesmo); a ser capaz de estar quieta a pasmar, olhando detidamente para a paisagem, tomando consciência de fazer assim parte dela, e deter-me em coisas que me assaltam horas depois de as ter visto e a evoca-las inesperadamente; a manter a espinha direita como o fio de prumo que trouxe do mercado de estremoz; a ter muitas pontas soltas numa história e a cerzi-las como num livro policial, quando ninguém mais esperava que se descobrisse a urdidura perfeita; a ser paciente nessa demanda, e tendo sempre mais coragem que medo.
naquela madrugada, como nos filmes que o meu pai sempre me deixou ver antes da idade aconselhada, deslindáramos uma charada, e a viagem do fim-de-semana fora precisamente a recompensa pela revelação alcançada – não estará tudo perdido quando uma praça de gente madura se põe a pensar. na mala que trago a tiracolo, passei a trazer uma régua metálica, muito bonita, de cálculo de munições necessárias para um tiro certeiro. será um objecto talvez demasiado raro para o trazer sempre comigo, mas servirá para pensar detidamente antes de qualquer gesto de arremesso e, depois, confiante, disparar sem hesitação.
https://www.youtube.com/watch?v=dxf7dIUiP4w
Fernando Lopes-Graça e Lisboa cantat cantam "Acordai".
"Alma-Grande", de Miguel Torga, em dia de discussão e votação parlamentar da despenalização da eutanásia.