"there is a voice in my head and it is not me".
lobo antunes falava do que a morte de cardoso pires fora para si: uma voz que deixa de atender o telefone do outro lado. não tenho melhor definição que esta. mas, ao mesmo tempo, sinto que a voz muda apenas do ouvido onde encostamos o auricular do telefone, para dentro da cabeça, e anda por ali a vaguear, ora silente, ora sonora.
durante anos, depois de vir embora de lisboa, tinha um amigo - antigo chefe -, que me ligava quase todos os dias pelas cinco da tarde, e me perguntava: "que fazes tu, rapariga? muito te dispersas, mas é nisso que tens também a tua virtude, que depois ligas isso tudo como parecia não ser possível. que leste tu esta manhã? e que escreves tu esta tarde?". (demorei anos a perceber que tinha razão este método e nesta pergunta, e chego lá agora, esperando que a tempo). essa voz calou-se em 2007. mas é raro o dia em que, na minha cabeça, pela hora do chá que nunca tomamos, não oiça essa voz, mais cavernosa nuns dias de mais fumo, mais translúcida como os seus olhos noutros dias luminosos. ficaram-me as suas dedicatórias nos livros que me foi dando, a pretexto de tudo e de nada. num deles, “a divina comédia”, de dante, escrevera “já que vais parar ao inferno, é da mais elementar prudência que recolhas informação sobre ele”. (à conta disto, subi a ponte da arrábida : pela importância de se ver um rio de cima, pela importância de se ver, de frente, o que ali vai e ali não fica. à conta disto, foi sempre pelos livros que comecei toda e qualquer aventura). ficaram-lhe as cartas que lhe escrevi, de 2001 até à sua falta – uma fotocópia de uma tira do calvin, uma passagem de manuel antónio pina, um postal de paris, mais de duas dezenas de envelopes, que vi perfilados numa bonita caixa de madeira, no dia em que comemos tangerinas de folhinha, quando o visitei, e descascou uma tangerina, como não fazia há 40 anos, e depois esfregou as mãos nas cascas, e levou-as ao cabelo, “não haverá hoje mulher que me resista, que tenho em mim o melhor perfume do campo.” vi os envelopes religiosamente abertos, ordenados por data, e perante o meu espanto, disse-me, a sorrir, “são como que presentes que desembrulho, releio e volto a guardar; amiga, reler-te as cartas é uma forma de ter a tua visita quando não a tenho.”
desde que fui estudar para coimbra, em 1993, melhor ou pior, mais brevemente ou não, sempre falei todos os dias com os meus pais, hábito que se manteve quando me deparei, na cidade do porto, em 1999, com um estágio de advocacia que iria mostrar-se uma prova de fogo, premonitória da prática que conheci desde então. o meu pai sempre me perguntava, umas vezes quase a medo, noutras cheio de ânimo, “como vai isso, camarada?”, mesmo sabendo a resposta, mesmo antecipando uma mentira piedosa para ambos. respondia que ia andando, repetia que ia sempre, que à força de tanto se repetir, talvez se passasse a cumprir. quase dois anos depois, quando quis ir para lisboa estudar novamente, num projecto-piloto que o meu pai que vira no jornal, mandou-me embora e disse-me que não olhasse para trás; quando me convidaram, poucos meses mais tarde, para ir para lá trabalhar, disse-me o mesmo: “primeiro dizemos que sim, depois logo se vê como; se não gostares, vens embora, que não tens de ficar contrariada em lado nenhum”; ia por três meses, fiquei um ano e meio, aprendendo a pensar como depois nunca mais, acumulando dezenas de livros lidos, milhares de quilómetros de comboio e de carro, e sempre encontrando umas horas, em barcelos ou no porto, para um almoço, um jantar, um café, um porto, um tinto, uma troca de fotografias, livros, cigarrilhas e histórias de aventuras; quando, anos mais tarde, me indicaram para uma entrevista a que fui de fato, sim, mas de sapatilhas vermelhas e de espinha direita, disse-me apenas: “não sei se te darás nisso, que te vão pedir para escreveres o contrário do que pensas. mas poderás sempre voltar para casa, se tudo correr mal, que haverá sempre uma sopa, um tinto e qualquer outra coisa.” (quem me indicou para a entrevista então não o faria agora, e se o meu pai soubesse o que andei a fazer, para que isto assim seja, talvez fosse maior o orgulho que a censura); quando me atirei, de cabeça e coração, para um doutoramento em arquitectura, em 2010, o meu pai leu a carta da candidatura, na sala de espera de uma sessão de radioterapia, e disse-me “ eu aceitava-te. mas terás de correr muito, ler muito, escrever muito. mas isso para ti não será um problema. bem, talvez o correr.” e gargalhou, como só ele, como só eu.
mesmo nos seus piores dias, o meu pai continuava a perguntar “como vai isso, camarada?”. devolvia-lhe a pergunta, muitas vezes sem lhe responder, e muitas vezes nos mentimos ambos, com todos os dentes que tínhamos na boca, sabendo disso, mas sabendo que nos repetíamos a pergunta, santo e senha, como forma de fazer de conta que não se passava nada, que não tinha sido nada, que os joelhos esfolados, as mãos abertas, o coração rasgado em pedaços como papel, a cabeça em cacos, a alma em tirinhas, os nervos em franja, a saúde numa rodilha, não era nada, ninguém vira senão nós, tudo se leva, tudo passa, “como vai isso, camarada?”, e de repente, parece que é a pergunta que traz normalidade a tudo o que não a tem.
o meu pai foi embora em maio de 2011 e, eu continuo, todos os dias, quando ligo para casa, logo pela manhã ou depois do jantar, a esperar que, além da mãe, o pai atenda o telefone com aquela voz de corpo diplomático, mordomo de filme policial, e pai de todos os dias, “faz favor?”, “como vai isso, camarada?”. respondo secretamente à pergunta que me faço, por sua vez, fazendo franca batota. e prossigo, como se não me custasse ainda.
desarrumo muitas vezes livros das estantes , só para ler as dedicatórias que o meu pai me escreveu nos livros, únicas cartas que me deixou : que escrevera demasiado na juventude, especialmente nos 50 meses de tropa, para se entreter, e que não era preciso escrever-se aos filhos, se lhes dera livros, e se sentara à mesa com eles. eu escrevi muitas vezes aos meus pais, mas nunca tive resposta (depois, anos mais tarde, outros se juntaram à lista dos não respondentes). nas dedicatórias dos livros, dava conselhos, fazia trocadilhos com os títulos dos livros, escrevia de forma inclinada, muitas vezes em letra de imprensa, como se não tivesse sido professor de caligrafia (e como se eu não fosse o seu pior caso perdido nessa questão). herdei-lhe, ainda em vida, esse hábito, e quando lhe dava livros (e foram muitos, nunca conseguindo igualar os que recebi), escrevia a dedicatória muitas vezes, ainda de pé, ao balcão da livraria, então como hoje, e depois tinha de traduzir-lhe o arame farpado, como lhe chamava. colava um papel com a tradução ao lado da dedicatória, para me envergonhar. mas eu não tinha então a vergonha que hoje continuo a não ter.
no dia da morte do meu pai, chorou também um amigo meu que nunca o conhecera pessoalmente, tendo apenas falado ao telefone, apresentando-se cerimoniosamente, e fazendo de mim pombo correio para troca de garrafas e de simpatias. eram da mesma idade, leram os mesmos livros, gostavam do mesmo tinto, perderam-se ambos da vida que gostavam de ter tido e do que nela gostavam de ter sido (o meu pai médico, o meu amigo arnaut diplomata), e ambos sabiam que me esperaria o mesmo, se não os ouvisse a tempo. lutavam contra a repetição da história, e pelo regresso do sonho lindo que acabou, ao procurarem educar a geração seguinte.
telefonava ao meu amigo arnaut e este respondia-me, umas vezes alegre, noutras arrasado, “estou sim? ó minha amiga, como andas?”. conversávamos horas a fio, umas vezes, ao telefone, outras, quando o visitava em lisboa. com a passagem do tempo, fui tendo a capacidade de me zangar, de me revoltar, de discordar – umas vezes, ria-se, que fizera de propósito, só para me ouvir; noutras, amuava semanas, meses, mas sempre tomava eu a iniciativa de lhe voltar a falar, porque é assim que se deve ser com os amigos, especialmente os velhos. e fazia-o mandando-lhe um correio – uma carta, um postal, um livro, uma caixa de música – era a bandeira da paz que acenava, e educadamente, respondia a agradecer. ambos fazíamos de conta que não tínhamos perdido tempo aborrecido, mas ambos tínhamos noção, de umas vezes para as outras, que os tempos de guerra tinham de se encurtar, que podíamos ter menos tempo pela frente do que julgáramos.
também me dera muitos livros, e depois uma casa onde os guardar, e onde me guardar a mim. dedicatórias não as escrevia nos livros, mas transcrevia passagens que me queria sublinhar, numa caligrafia peculiar, em esferográfica preta, em papel almaço de 25 linhas, e
mandava-mas pelo correio : uma de peréc sobre a forma de regular a vida, e outra sobre o ser provável passarem por cima de nós, quando somos oposição ao que pretende perdurar. tenho-as em lugares onde me confronte com elas, para medir a distância que trago de as falhar ou de as cumprir, para servirem de alerta. esta voz calou-se este ano para os outros, mas ressoou, na minha cabeça, este verão, na brisa da tarde, ao sul, entre livros, tintos e árvores plantadas há poucos meses.
as decisões que tinha para tomar - calar ou falar, ir ou ficar, persistir ou soçobrar, eram sérias, quase sempre irreversíveis, e oiço-me a perguntar a quem não me responde a não ser dentro da cabeça, ou fumando sempre, fitando o tejo, ou segurando entre os dedos a esferográfica das palavras cruzadas ou o papel do pacote do café, olhando o pessegueiro bravo florido no quintal, ou interrompendo a frase para beber um gole de qualquer coisa, detendo-se na reprodução do quadro de magritte na parede.
olhando-os aos três, ressaltam as diferenças: cargos de poder ou com carreiras monótonas suportadas apenas para levar a vida; muitos filhos ou sem nenhum; acções políticas empenhadas (clara ou clandestinamente) ou pequenos actos com grandes consequências (como ensinar soldados a ler e a escrever). mas ressaltam também as semelhanças : centenas de livros lidos e outros tantas apenas debicados ou adiados (que seriam estas três bibliotecas reunidas?), uma grande paixão pelo alentejo, e grandes amores e desamores e amizades nas suas vidas, e abraços apertados nas chegadas e nas partidas, com direito a festas no cabelo, gestos de ternura, e um brilho nos olhos, de riso ou de comoção.
“são de nada as tempestades”, havendo estas vozes dentro da cabeça, umas vezes quase falando umas com as outras (como se tivesse sido possível tê-los, algures no tempo, sentado todos à mesma mesa), outras vezes quase falando comigo. não respondem a perguntas novas, só repetem o que já disseram, mas é então que regressa aquele verso de manoel de barros : “repetir, repetir, repetir até soar diferente.” talvez soe, talvez sirva, talvez estas vozes, que aparentemente se calaram do lado de fora, falando hoje do lado de dentro, ressoem, em parte, na minha voz, e talvez assim não se tenham perdido para sempre, e talvez assim não me perca eu.